José Bento Cardoso Vidal Neto
A gramatização do Português do Brasil na Grammatica portugueza, de Júlio Ribeiro (1881)*
1. Introdução
Edith Pimentel Pinto, em sua obra O Português do Brasil – vol. I, diz que:
É somente nos meados do século XIX, com Varnhagen [com o prólogo que o autor escreve para a publicação do seu Florilégio da poesia brasileira], que a língua do Brasil assume contornos de problema de interesse nacional e, concomitantemente, passa a constituir objeto de cogitação, para registro de uma realidade já consistente e documentável. (1978, XVI)
O deslocamento da discussão para o campo da literatura fez crescer o debate e a visibilidade desta questão, abrindo, assim, o caminho para que autores românticos como Gonçalves Dias (1823-1864) e José de Alencar (1829-1877) discutissem este assunto e reforçassem o valor do registro brasileiro da língua portuguesa.Com efeito, é justamente a partir do tema que suscitou esta discussão, ou seja, os aspectos referentes à realidade linguística brasileira, que propusemos o presente trabalho. Há de se destacar, no entanto, que nossos estudos estão circunscritos em um campo bem específico: a gramática tradicional.
Ao relacionarmos Português do Brasil e gramática, forçosamente, fomos levados à Grammatica portugueza, de Júlio Ribeiro (1845-1890), uma vez que este compêndio foi, em 1881, o primeiro a registrar de maneira substancial marcas relativas à variedade brasileira do Português, sendo, portanto, o primeiro a gramatizá-la.
Para realizar este estudo, nos atrelamos teórico-metodologicamente aos conceitos de Sylvan Auroux (1992;1998a), especificamente, no que tange ao processo de gramatização e à hiperlíngua e também no que diz respeito à significativa importância exercida pelos instrumentos linguísticos.
Quanto ao significado de gramatização, Auroux (1992, 65, grifos do autor) diz que "deve-se entender como o processo que conduz a descrever e a instrumentalizar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário". Com efeito, há ainda de se salientar a configuração de uma importante relação entre estes compêndios metalinguísticos e os usuários das línguas, motivo pelo qual este autor os denominou instrumentos linguísticos.
Já quanto à hiperlíngua, Auroux (1994, 243, grifos nossos) destaca que "em qualquer situação, ela [a hiperlíngua] é esta realidade última que engloba e situa toda realização linguística e limita concretamente toda inovação. [pois] Se os sujeitos não se compreendem, não há hiperlíngua".
Com efeito, se neste modelo proposto por Auroux, a hiperlíngua representa a totalidade de uma determinada língua, ou seja, como afirmou o autor, é a sua realidade última, podemos, assim, depreender que quando falamos sobre uma determinada hiperlíngua, estamos fazendo referência não apenas aos usos considerados cultos de uma língua, mas também aos usos tidos como não cultos.
Devemos aqui destacar, que normalmente as gramáticas tradicionais[1] se limitam apenas aos registros tidos como cultos de uma determinada hiperlíngua, deixando de fora os demais registros que não se enquadram no referencial da norma culta[2].
Ao incluir marcas do Português do Brasil em sua Grammatica, Ribeiro amplia o registro da hiperlíngua brasileira que normalmente era feito pelos compêndios gramaticais publicados em solo nacional, fato que torna seu trabalho digno de análise e de estudo mais detido.
Com efeito, a compreensão do processo acima destacado passa pela análise dos óbices que Ribeiro fazia ao modelo gramatical Racionalista ou, nas suas palavras, à metafísica.
2. A transição do Racionalismo para o Naturalismo na gramaticografia brasileira
O posicionamento crítico de Ribeiro (1914, I) quanto à metafísica[3] ficou conhecido pela frase por ele utilizada para abrir o prólogo da 2ª edição: "As antigas grammaticas portuguezas eram mais dissertações de metaphysica do que exposições dos usos da língua". Esta frase dá sequência a uma outra frase utilizada por Ribeiro (1881, 291, grifos nossos), na 1ª edição, para referir-se pejorativamente ao racionalismo da Gramática Filosófica: "Subtilezas só engendram confusão: em metaphysica cada qual discreteia a seu modo, e ha sempre tantas sentenças quantas são as cabeças".
Ribeiro realiza tais críticas justamente por conceber a língua e a gramática de forma distinta àquela proposta pelos metafísicos. Diferentemente do que era proposto por este modelo, Ribeiro se levanta contra a necessidade teórico-metodológico de o gramático submeter seus dados e seus estudos linguísticos à prova da razão. Ao dizer o que não aceitava em matéria de estudos sobre a linguagem, Ribeiro (1881, 291, grifos nossos) também aponta para aquilo que acha ser o único caminho possível para tais investigações: "As irregularidades, os idiotismos[4], os dizeres intimos de uma lingua só pelo estudo historico comparativo podem ser postos em luz, explicados, solvidos".
Este embate entre modelos gramaticais epistemologicamente diferentes pode ser compreendido em função de uma mudança de concepção quanto ao que seja científico, uma vez que Ribeiro nega os critérios de ciência do Racionalismo e liga-se aos valores do Empirismo, especialmente aos do Naturalismo.
Com efeito, não é exagerada a afirmação de que a concepção naturalista de língua adotada por Ribeiro é que comanda seu pensamento linguístico e que, desta forma, suas explicações gramaticais pautam-se nesta opção. Ribeiro parte da tese de que a língua é um organismo vivo estando, assim, sujeito ao nascimento, crescimento e morte.
A opção que Ribeiro fez pelo Naturalismo o colocou no âmbito teórico do Empirismo. A respeito deste último, Hessen (1964, 68-69) nos esclarece que:
O empirismo (de έμπειρία = experiência) opõe à tese do racionalismo (segundo a qual o pensamento, a razão, é a verdadeira fonte de conhecimento), a antítese que diz: a única fonte do conhecimento humano é a experiência. Na opinião do empirismo, não há qualquer património a priori da razão. A consciência cognoscente não tira os seus conteúdos da razão; tira-os exclusivamente da experiência. O espírito humano está por natureza vazio; é uma tábua rasa, uma folha em branco onde a experiência escreve. Todos os nossos conceitos, incluindo os mais gerais e abstratos, procedem da experiência. Enquanto que o racionalismo se deixa levar por uma ideia determinada, por uma ideia de conhecimento, o empirismo parte dos factos concretos.
Relativamente às ciências naturais, Hessen (1964, 69-70) nos mostra o quanto que elas se valem dos modelos analíticos propostos pelo Empirismo. Vejamos:
Enquanto que os racionalistas procedem da matemática a maior parte das vezes, a história do empirismo revela que os seus defensores procedem quase sempre das ciências naturais. Isto é compreensível. Nas ciências naturais a experiência representa papel decisivo. Nelas trata-se sobretudo de comprovar exactamente os factos mediante uma cuidadosa observação. O investigador está completamente entregue à experiência. É muito natural que quem trabalha de preferência ou exclusivamente com este método das ciências naturais, tenha tendência para de antemão colocar o factor empírico sobre o racional. Enquanto que o filósofo de orientação matemática chega fàcilmente a considerar o pensamento como a fonte única do conhecimento, o filósofo que vem das ciências naturais tenderá para considerar a experiência como fonte e base de todo o conhecimento humano.
A opção pelo método experimental é feita por Ribeiro (1880, 11, grifos do autor) na introdução de seu livro Traços geraes de linguistica, local em que ele faz a seguinte afirmação: "Os processos de investigação e verificação de que usa o homem consistem na observação e na experiencia cuja reunião constitue o methodo experimental. Os instrumentos do methodo experimental são os semtidos e o juizo".
Desta forma, podemos perceber como Ribeiro julga ser o adequado posicionamento de um pesquisador: inicialmente, deve lançar-se à observação dos fenômenos, depois refletir sobre eles, ou seja, os estuda (cria um juízo a respeito) e, finalmente, depois deste processo está habilitado a emitir suas considerações a respeito do fenômeno observado.
Desta forma, considerando a importância dada por Ribeiro à experiência empírica, é possível compreender o motivo que fez o autor incluir em seu texto gramatical algumas marcas aquilo que observava quanto a alguns usos linguísticos realmente praticados no Brasil, ou nos termos de Auroux (1994), da hiperlíngua brasileira.
Para um gramático empirista não seria possível ignorar aquilo que se impunha à sua experiência sensível, que, no seu caso, eram as especificidades do Português do Brasil.
3. A questão da língua portuguesa do Brasil na Grammatica portugueza, de Júlio Ribeiro
Já tendo apresentado o mencionado ineditismo de Ribeiro quanto aos registros da língua portuguesa praticada no Brasil, o presente trabalho se propõe, agora, a levantar e melhor compreender os fatores que conduziram o autor a tal façanha.
Apontando para a importância de Ribeiro para a gramaticografia brasileira, Leite (2005a, 104-105) assim se manifesta:
Efetivamente, o que nos interessa [em Júlio Ribeiro] é ter sido o autor um verdadeiro renovador da norma gramatical portuguesa, sob dois pontos de vista: o primeiro, do trabalho sobre algumas marcas da língua realmente praticada no Brasil e, depois, da renovação da teoria gramatical.
Com efeito, quanto ao processo destacado pela autora, apontamos para a nossa hipótese interpretativa: julgamos que a renovação da teoria gramatical foi a responsável direta pela presença, na Grammatica, de algumas marcas da língua realmente praticada no Brasil. Ou seja, julgamos que a consideração da hiperlíngua brasileira, por parte de Ribeiro, se deu em função de um movimento anterior de quebra e renovação das teorias que embasavam a maioria dos gramáticos da época, notadamente, os valores racionalistas da Gramática Filosófica.
Efetivamente, o modelo gramatical racionalista – que vigorava em solo nacional até final do século XIX[5] - não se ocupou em registrar, em compêndio, as marcas do Português do Brasil, mesmo que empiricamente as evidências linguísticas já apontassem para a presença de variações em relação ao Português de Portugal, com efeito, acumuladas ao longo de quatro séculos. Ou seja, nenhuma gramática filosófica do Português, mesmo as escritas por gramáticos brasileiros e aqui editadas, se ocupou em gramatizar o Português do Brasil.
Não se deve, porém, imputar culpa apenas ao Racionalismo pelo não registro gramatical das marcas da variedade brasileira do Português, uma vez que nas gramáticas particulares sempre há uma norma linguística a ser prescrita. A prescrição de uma determinada norma liga-se fortemente àquilo que é considerado como bom uso da língua em uma determinada época. Tal processo normativo é herdado de uma das principais características do modelo gramatical greco-latino.
Quanto à diversidade de modelos gramaticais no Brasil novecentista, Leite (2007b, 5, grifos da autora) diz que:
[...] fica exposta a barafunda gramatical que vigorava no Brasil no século XIX pela presença, em diversas obras, de métodos variados, seja o fundeado somente na teoria greco-latina (o prescritivista), seja o ancorado na teoria racional (o filosófico), seja o histórico (o historicista), que depois da publicação da gramática de Júlio Ribeiro, se difundiu pelas gramáticas brasileiras [...].
Quanto a Ribeiro, não é somente o seu viés empirista (que em termos epistemológicos está representado pela adesão à Gramática Histórico-Comparada) que aparecerá em sua Grammatica, mas também o viés prescritivista, normativo. Seu trabalho é, pois, uma oscilação entre estas duas vertentes, ou, em outros termos, Ribeiro encerra em si o gramático tradicional e o cientista da línguagem. Ora um se manifesta mais destacadamente, ora outro.
3.1 A evolução linguística e o processo de gramatização do Português do Brasil na Grammatica portugueza, de Júlio Ribeiro
Como indicamos no item anterior, as opções epistemológicas tomadas por Ribeiro trarão importantes consequências para o registro pioneiro da hiperlíngua brasileira em uma gramática. Ribeiro aceitou o princípio de que as línguas mudam, pois partiu, doutrinariamente, de uma concepção evolucionista-darwinista para o fenômeno da evolução linguística, e, assim, pôde abrir espaço para registrar, no corpo de sua Grammatica, tanto o processo de mudança linguística do Latim para o Português quanto o de variação linguística do Português de Portugal em relação ao Português do Brasil, como também de variações existentes internamente na variedade brasileira do Português.
A despeito da amplitude que o termo gramática pode encerrar, Auroux (1992, 66) toma o cuidado de bem delimitá-lo no âmbito do processo da gramatização. Vejamos:
Nós chamamos gramática de uma língua L, algo como o que fez Panini para o sânscrito; Dionísio de Trácia e Apolônio para o grego; Varrão, Donato e Prisciano para o latim e Sibawayhi e seus sucessores para o árabe. Uma gramática contém (pelo menos): a. uma categorização das unidades; b. exemplos; c. regras mais ou menos explícitas para construir enunciados (os exemplos escolhidos podem tomar seu lugar).
Com efeito, ainda falando sobre a gramática e sua importância para a descrição das línguas, Auroux (1992, 66) salienta o papel que exercem as regras em tais compêndios, principalmente, na relação existente entre a gramática e a realidade linguística. Vejamos:
As regras podem ser encaradas como prescrições (diga..., não diga ..., diz-se...) que não possuem nenhum valor de verdade ou como descrições (na língua L..., é enunciado correto, eles dizem...). É fácil passar do primeiro para o segundo tipo de formulação, o que explica que nunca existe, entre uma série de gramáticas prescritivas e uma outra série de gramáticas descritivas da mesma língua, a absoluta solução de continuidade que aí vê a historiografia tradicional: um certo saber se conserva sempre. Toda gramática equivale pois a um corpus (mais ou menos explícito) de afirmações suscetíveis de serem verdadeiras ou falsas. É por aí que ela é uma descrição linguística.
Assim dito, uma vez que o gramático, tanto nas gramáticas prescritivas quanto nas descritivas, detém a prerrogativa de definir seu corpus, seu exemplário, bem como as observações que fará sobre ele, tais comentários sobre a língua são necessariamente pautados em determinadas regras, mesmo considerando que em alguns casos elas não encontrem unanimidade entre os próprios gramáticos.
Deste processo, podemos depreender que, se a noção de regra está presente em qualquer mecanismo de descrição gramatical, os referenciais de correção em uma determinada língua não serão os mesmos quando nela houver uma gramática.
Em relação aos impactos que uma possível ausência de gramática acarreta em uma língua, Auroux (1992, 69) salienta o fato de que tal inexistência aumenta o leque de possibilidades quanto à variação linguística. Vejamos:
Em um espaço linguístico vazio, ou praticamente vazio, de intervenções tecnológicas [referência à gramática e ao dicionário], a liberdade de variação é evidentemente muito grande e as descontinuidades dialetais, que afetam essencialmente traços que não se recobrem, são pouco claras. A gramatização, geralmente se apoiando sobre uma discussão do que seja o "bom uso" vai reduzir esta variação. Basta considerar, para cada uma das línguas europeias, a série dos gramáticos, do século XVI ao fim do século XVII, para ver como se reduzem as diferentes variantes de uma mesma forma até desaparecerem.
Como pôde ser visto, para Auroux (1992), a gramática está longe de ser apenas um repositório passivo de regras e usos de uma determinada língua. Efetivamente, ela está inserida em um processo contínuo de instrumentalização tecnológica da fala natural. Em função da importância que este processo desempenha quanto à variação das línguas, Auroux (1992, 69-70, grifos do autor), no bojo de seus estudos sobre a gramatização, denominou a gramática – bem como o dicionário – como instrumentos linguísticos. Vejamos as palavras do autor quanto a este processo:
A gramática não é uma simples descrição da linguagem natural, é preciso concebê-la também como um instrumento linguístico: do mesmo modo que um martelo prolonga o gesto da mão, transformando-o, uma gramática prolonga a fala natural e dá acesso a um corpo de regras e de formas que não figuram junto na competência de um mesmo locutor. Isto é ainda mais verdadeiro acerca dos dicionários: qualquer que seja minha competência linguística, não domino certamente a grande quantidade de palavras que figuram nos grandes dicionários monolíngues que serão produzidos a partir do final do Renascimento (o contrário tornaria estes dicionários inúteis a qualquer outro fim que não fosse a aprendizagem de línguas estrangeiras). Isto significa que o aparecimento dos instrumentos linguísticos não deixa intactas as práticas linguísticas humanas.
Com efeito, podemos afirmar que da mesma forma que Fernão de Oliveira (1507-1581) e João de Barros (1496-1570) foram os primeiros autores a gramatizar o Português, respectivamente, em 1536 e 1540[6], Ribeiro, ao lançar sua Grammatica portugueza, em 1881, foi o primeiro autor a gramatizar o Português do Brasil, uma vez que, como já salientamos, ele foi o primeiro a registrar na gramática tradicional marcas da variedade brasileira do Português. Tais traços eram, até então, solenemente ignorados pelos gramáticos, mesmo por aqueles que eram brasileiros e editavam seus trabalhos em solo nacional, como foi o caso do maranhense Sotero dos Reis, importante gramático à época de Ribeiro.
Devemos aqui sublinhar que o processo de gramatização do Português do Brasil, acima destacado, foi realizado por um modelo gramatical até então inédito na gramaticografia brasileira e que foi inaugurado por Ribeiro, em 1881: a Gramática Histórico-Comparada.
Para que tal autor pudesse levar a cabo um estudo gramatical em que seus valores evolucionistas-darwinistas fossem contemplados e desenvolvidos – principalmente, em relação à recuperação dos estágios evolutivos antigos do Português e suas implicações na sincronia da língua portuguesa - Ribeiro encontrou condições ideais para tal tarefa justamente nas proposições teóricas e nos métodos de estudo utilizados pelo modelo histórico-comparatista.
Efetivamente, para Ribeiro, os métodos apregoados pela Gramática Filosófica e até então vigentes no Brasil - final do século XIX - não eram suficientes ou mesmo adequados para seus propósitos analíticos, que como já dissemos, eram de teor evolucionista-darwinista.
Diferentemente do que ocorria no modelo racionalista, a concepção naturalista de língua, por tratá-la como um ser vivo, estabelece relações de parentesco, biologicamente consideradas, entre as diversas línguas existentes. Neste sentido, o intuito dos linguistas-naturalistas era o de reconstruir estes parentescos linguísticos, perdidos ao longo do tempo, para que, assim, servissem na compreensão de como estas relações se manifestavam no presente das línguas. Para realizar tal estudo, a utilização dos métodos propostos pela Gramática Histórico-Comparada serviu para que muitos linguistas-naturalistas pudessem levar a cabo os objetivos de análise acima destacados.
Dito de uma outra forma, podemos dizer que o surgimento da Gramática Histórico-Comparada constituiu uma importante ferramenta de análise para os estudiosos que concebiam as línguas como organismos vivos e, assim, passíveis de evolução.
3.1.1 Hiperlíngua brasileira e os registros do Português do Brasil
Como afirmou Leite (2005a), Ribeiro foi o primeiro gramático a considerar a hiperlíngua brasileira no âmbito de uma gramática tradicional.
Devemos aqui destacar, que normalmente as gramáticas tradicionais se limitam apenas aos registros tidos como cultos de uma determinada hiperlíngua, deixando de fora os demais registros que não se enquadram no referencial da norma culta.
Como já sabemos, este tratamento assimétrico, dado aos diferentes registros de uma determinada língua, emana da origem histórica da gramática tradicional, notadamente do modelo greco-latino, que era fundamentado no eixo da prescrição gramatical. Efetivamente, para que haja prescrição em uma língua deve necessariamente existir um referencial que a oriente. No caso das gramáticas tradicionais sua orientação é a de atender aos ditames estabelecidos pela norma culta.
Porém, mesmo que assim procedam, muitas gramáticas tradicionais acabam registrando alguns usos não cultos de uma determinada língua, mesmo que normalmente isso seja feito com o intuito de criticá-los. Desta forma, a despeito de repreenderem tais usos, estas gramáticas acabam por ampliar, em seus textos, o leque de considerações sobre a hiperlíngua da língua estudada, uma vez que incluem, mesmo que para sancioná-los, usos da língua considerados como não cultos.
No que tange a hiperlíngua brasileira, Ribeiro registrou, como normalmente faz um gramático, a norma culta do Português, que, em sua época, tinha seu valor referencial definido única e exclusivamente pela norma lusitana. Porém, além dos usos cultos, ou seja, aqueles ligados a Portugal, Ribeiro trouxe também para seu compêndio marcas do Português utilizado no Brasil, inclusão que, como já destacamos, foi pioneira na gramaticografia brasileira, mesmo considerando que, em alguns casos, o uso brasileiro do Português mereceu reparos ou mesmo críticas por parte de Ribeiro.
Com efeito, tal gesto foi de grande importância, uma vez que as gramáticas brasileiras até 1881, especialmente as de base filosófica, simplesmente ignoravam a realidade linguística brasileira, mesmo que fosse para criticá-la.
Ao fazer menção a usos típicos da variedade brasileira do Português, Ribeiro abre espaço para o início de uma longa discussão sobre a nacionalidade linguística brasileira, levada a cabo intensamente, em território nacional, na primeira metade do século XX.
Quanto à presença de tais usos na Grammatica, preliminarmente, realizamos um levantamento numérico-descritivo destes, atitude que nos mostrou o seguinte cenário:
Quanto ao segundo ponto, nos chamou a atenção o posicionamento do gramático quanto à sanção ou não destes usos variantes observados e descritos por ele em sua Grammatica.
A apresentação dos resultados da análise das 28 referências acima mencionadas, que ora passaremos a fazer, foi organizada da seguinte forma: estudo da seleção dos trechos mais representativos quanto às diferenças de uso do Português em Portugal e no Brasil e, depois, estudo da seleção de trechos relativos às diferenças internas do próprio Português do Brasil. Conjuntamente a tais análises, incluiremos nossas observações no que diz respeito ao posicionamento normativo do gramático, ou seja, se ele sancionou ou não os usos que arrolou em sua Grammatica e que foram, por nós, selecionados.
Assim dito, passemos, então, à análise dos trechos em que são confrontadas por Ribeiro diferentes realizações linguísticas do Português em Portugal e no Brasil.
Neste primeiro grupo de trechos da Grammatica, as diferenças apontadas por Ribeiro são de nível fonológico. Ali, Ribeiro (1914) acentua um fato relevante quanto às diferenças de registro entre estes dois países: suas diferentes prosódias. Vejamos:
Exemplo (1):
A voz tonica commum i representa-se: [(1) e (2)] 3) por e, na terminação de todos os vocabulos barytonos e na conjuncção e, ex.: cidade -mosarabe - montes e valles, que se leêm cidadi – mosarabi - montis e valis.
A maioria dos Brazileiros assim pronuncía: em Portugal diz-se – cidade - mosárabê - montês ê vallês, dando á voz terminal um som abafado, muito distincto de i. (Ribeiro, 1914, 31, grifos do autor)
Exemplo (2):
O diphthongo nasal ãe representa-se sempre por ãe, ex.: capitães - mãe.
Os portuguezes pronunciam em final como o diphthongo ãe: vem dahi a rima, tão estranha aos ouvidos brazileiros, de mãe com ninguem, tambem, etc. ex.:
"Triste de quem der um ai
Sem achar echo em ninguem!
Felizes os que têm pae,
Mimosos os que têm mãe! (1)[7]" (Ribeiro, 1914, 53, grifos do autor)
Exemplo (3):
Alteram-se os vocabulos por addicção, por eliminação, por transposição, e por absorpção, de vozes ou de modificações.
A absorpção da voz livre pura que termina um vocabulo pela voz livre inicial do vocabulo seguinte chama-se synalepha, ex.: da, mo, por de-a me-o.
A synalepha não se effectua quando está sob o accento tonico a voz livre terminal do primeiro vocabulo, nem tampouco na inserção por tmese de pronomes em verbos.
A pratica da synalepha é mais seguida em Portugal do que no Brazil; todavia ella é de rigor na leitura corrente, bem como a ligação dos vocabulos quando seus elementos o permittem, ex.:
‘Dom donzel, onde é que está el-rei? dizia Affonso Domingues ao pagem’. (ALEXANDRE HERCULANO).
lê-se:
Dom donzé londé questá el-rei ? dizí Affonso Domingue záo pagem. (Ribeiro, 1914, 25-26, grifos do autor)
Não há nos exemplos (1), (2) e (3) significativa tomada de posição de Ribeiro quanto à definição de qual prosódia é mais adequada. Como pôde ser visto, o tom do gramático é mais descritivo, do que sancionador, mesmo que, no exemplo (1), a pronúncia brasileira para a "voz tonica commum do i" faça parte do terceiro item da prescrição gramatical. Com efeito, não há sanção ao uso prosódico de Portugal, fazendo, assim, que a inclusão da prosódia brasileira, no corpo da gramática, represente mais uma atitude de abonar esta realização fonológica brasileira, do que uma sanção ao uso português.
No próximo grupo de exemplos (4), (5) e (6) podemos perceber a questão da evolução linguística do Português de forma bastante clara. Isto se deve ao fato de tratarem da passagem, da evolução do Latim para o Português, ou seja, tratam do que hoje estudamos sob o nome de mudança linguística. A ideia de evolução das línguas também aparece quando Ribeiro introduz suas observações quanto ao uso brasileiro do Português. Com efeito, ao contrastar, sincronicamente, diferentes usos do Português – em Portugal e no Brasil - Ribeiro fez referência ao processo hoje denominado variação linguística.
Os exemplos (4), (5) e (6) estão localizados na seção sobre Etymologia, da Grammatica. No exemplo (4), encontramos as referências ao Português do Brasil em um longo tópico de Ribeiro (1914, 156) sobre a "passagem do Latim para o Portuguez", evolução estudada em 23 itens. Especificamente, tais referências ao uso brasileiro são encontradas nos itens 14 e 17 do referido tópico. Vejamos, então, o item 14:
Exemplo (4):
14) dissolução em voz livre da primeira de duas modificações que actuam sobre a mesma voz [referência às mudanças fonéticas do Latim para o Português].
A modificação dissolvida fica formando diphthongo com a voz precedente. C, g, l, p, iniciaes de grupos modificativos, dissolvem-se em i: noite de nocte; reinar de regnare; buitre, escuitar (fórma antiga e usada ainda no Brazil), fruita (fórma antiga e ainda usada no Brazil), muito, de vulture, ascultare, fructu, multo; conceito de concepto. X divide-se em cs: c dissolve-se em i, e s assume a fórma graphica de x com valor de ch; eixo, de axe, teixo de taxo. O mesmo acontece com os grupos ct, ps, cs, ss: feito de facto; caixa de capsa; feixe de fasce; paixão de passione.
Sobre a voz que precede a modificação dissolvida, ha a notar:
[(a) e (b)] c) a voz a antes de i, resultante da dissolução de l, converte-se em o, formando o diphthongo oi: coice de calce; foice de falce.
Na mór parte dos casos, a dissolução depois de o, além de ser em i, póde tambem ser em u: noite ou noute, coice ou couce, foice ou fouce. Todavia ha fórmas immoveis consagradas pelo uso: diz-se sempre oito e não outo; Outubro, douto e não Oitubro, doito.
Depois de u é rara a dissolução de c em i; todavia ha exemplos, como os acima citados--escuitar, fruito, que se encontram em Camões e são vigentes no Brazil.
Neste caso de dissolução, a voz precedente u converte-se por vezes em o: aloitar, loitar (em Portuguez antigo, no dialecto Gallego e ainda hoje no interior do Brazil) por luctar de luctare. (Ribeiro, 1914, 160, grifos do autor)
Mais à frente, também na seção sobre Etymologia, encontramos os exemplos (5) e (6), nos quais as referências ao uso brasileiro do Português aparecem, respectivamente, em subseções que versam sobre o "estudo historico da conjugação regular portugueza" e sobre o "processo de formação dos verbos portuguezes". Vejamos:
Exemplo (5):
2) Gerundio.
1.ª CONJUGAÇÃO 2 .ª 3 .ª 4 .ª
Cant-ANDO Vend-ENDO Part-INDO P-on-DO
O infinito gerundio portuguez é derivado da fórma ablativa do gerundio latino amando, monendo, etc. (1)
(1) O gerundio latino, que é, por assim dizer, uma verdadeira declinação do nome verbal infinito presente, passou para o romanico na fórma ablativa. Que o gerundio é o mesmo que o infinito presente acompanhado de preposição, prova-se pelas seguintes identicas phrases: Vi-o chorando (Brasil), vi-o a chorar (Portugal). (Ribeiro, 1914, 210, grifos do autor)
Exemplo (6):
Por derivação[8], formam-se verbos:
1) de substantivos: de trabalho, trabalhar; de dama, damejar; (J. FERR., Aul., 12 v); de caminho, caminhar; de numero, numerar; de purpura, purpurar; de pavão, pavonear; etc.
Galopar (Portugal) andar a galope; galopear (Brazil) andar a galope, e tambem, com sentido transitivo, principiar a domar uma cavalgadura, montando-a pelas primeiras tres vezes. (Ribeiro, 1914, 214, grifos do autor)
Como pôde ser visto, o processo de evolução, nos exemplos (4), (5) e (6), representado pela variação linguística entre o Português de Portugal e do Brasil, não são sancionados por Ribeiro, ao contrário, o gramático fundamenta os mencionados usos brasileiros com abonações históricas da língua. Há, em cada exemplo, especificidades que merecem, pois, análises individualizadas.
No exemplo (4), devemos salientar o emprego do recurso acima mencionado, aliás, frequentemente utilizado por Ribeiro em sua Grammatica. Isto ocorre quando o gramático comenta alguns usos vigentes à época, no Brasil, notadamente determinadas estruturas caras aos caipiras ou aos habitantes do interior. Tais usos, segundo se nota nas observações do gramático, existiam em outros períodos históricos do Português e sua permanência, sincronicamente observável na fala destes grupos, representa a preservação de resquícios históricos da língua.
Assim, ao analisar estas estruturas que não faziam mais parte da sincronia do Português e, tampouco, estavam previstas na prescrição gramatical, Ribeiro não as classifica como incorretas, apenas as circunscreve a um determinado grupo de falantes, como por exemplo, os caipiras ou os brasileiros interioranos.
As formas mencionadas por Ribeiro (1914, 160) neste exemplo são: fruita, escuitar e loitar (aloitar). Os dois primeiros termos são caracterizados como "fórma antiga e ainda usada no Brazil" salientando também que "se encontram em Camões e são vigentes [ainda] no Brazil". Já quanto ao terceiro termo, o autor diz que é um vocábulo do "Portuguez antigo, [presente] no dialecto Gallego e ainda hoje [também presente] no interior do Brazil".
Para explicar a presença destes termos em sua sincronia, Ribeiro recorre à história da língua, mostrando que tais formas podem ser explicadas ao se examinar algumas regras relativas à mudança fonética do Latim para o Português. No caso de fruito e escuitar, o gramático explica que houve nas formas latinas fructu e ascultare, respectivamente, a "dissolução" do c e do l em i. Já quanto à loitar (aloitar), Ribeiro (1914, 160) diz que "neste caso de dissolução, a voz precedente u converte-se por vezes em o". Aplicada esta regra, teríamos a seguinte evolução terminológica: luctar> luitar > loitar.
Com efeito, apesar de Ribeiro mencionar que tais vocábulos são característicos do Português antigo ou mesmo restritos ao interior do país, sua atitude de recorrer à história da língua para explicar, desenvolvidamente, sua permanência no uso do Português do Brasil, mostra a complacência de Ribeiro quanto às transformações/evoluções ocorridas no Português, desde que encontrem explicações históricas que as justifiquem.
No exemplo (5), Ribeiro (1914, 210, grifos nossos), ao falar do "infinito", o divide em "infinito presente" e "infinito gerundio". De acordo com o gramático, os portugueses preferem a primeira forma, ao passo que os brasileiros, a segunda. Tal escolha fazia os portugueses optarem por "Vi-o a chorar" e os brasileiros por "Vi-o chorando". Ribeiro (1914, 210, grifos nossos) equipara valorativamente as duas construções, dizendo: "Que o gerundio é o mesmo que o infinito presente acompanhado de preposição, prova-se pelas seguintes identicas phrases [cita as duas frases acima mencionadas]".
Como pôde ser visto no trecho deste exemplo, novamente a abonação de Ribeiro, quanto a um uso sincronicamente observável no Português do Brasil, vem da história da língua, justificada pelo processo de evolução do Latim para o Português.
Convém ainda destacar que esta observação de Ribeiro é atualíssima, uma vez que tais preferências permanecem inalteradas até hoje. Os portugueses continuam utilizando-se da construção [preposição + infinitivo] e os brasileiros, preferencialmente, continuam empregando o gerúndio.
Assim dito, passemos, então, ao exemplo (6), que é a próxima referência quanto aos diferentes usos do Português no Brasil e em Portugal e está localizada em uma subseção da Grammatica que estuda o "processo de formação dos verbos portuguezes". Neste local, Ribeiro (1914, 214, grifos do autor) diz que tal processo se dá por duas formas distintas: derivação e composição.
Do processo de derivação[9], o autor destaca a existência de duas formas variantes para o verbo galopar. Vejamos: "Galopar (Portugal) andar a galope; galopear (Brazil) andar a galope, e tambem, com sentido transitivo, principiar a domar uma cavalgadura, montando-a pelas primeiras tres vezes".
Relativamente ao exemplo acima destacado, podemos dizer que a posição de Ribeiro tende à neutralidade quanto às formas variantes do termo galopar, uma vez que além da descrição do processo em si, não há outros elementos no texto que indiquem a valoração ou a sanção do gramático quanto a uma delas.
Com efeito, se no âmbito fono-morfológico há complacência de Ribeiro quanto às mudanças motivadas pela evolução do Português, o mesmo não ocorre no que diz respeito à sintaxe.
Nesta seção da Grammatica, encontramos as únicas sanções que Ribeiro (1914, 262-264) faz, declaradamente, quanto aos usos brasileiros do Português. Tais reprovações aparecem sob a rubrica de "é erro vulgar", "pecca-se contra este preceito" e "é erro comezinho". Vejamos, então, o conteúdo destas críticas, nos exemplos (7), (8) e (9):
Exemplo (7):
Toda a palavra que serve de sujeito a um verbo põe-se em relação subjectiva. Como em Portuguez não se declinam os substantivos, a applicação desta regra só se torna patente quando o sujeito é um pronome substantivo, ex.: EU vejo as arvores - TU queres pão. Ha a notar as seguintes excepções: 1) O pronome substantivo sujeito de um verbo no infinito, dependente de um verbo no finito (chamam-se finitos os quatro modos, - indicativo, imperativo, condicional e subjunctivo), põe-se em relação objectiva, ex.: Eu vi-O caminhar ás pressas - Deixa-O ir.
Esta syntaxe, commum a varias linguas romanicas, é tomada directamente do Latim, em o qual o sujeito do verbo no infinito vai para o accusativo. E' erro vulgar no Brazil usar-se em casos taes da relação subjectiva: diz-se, por exemplo: Vi ELLE caminhar ás pressas. - Deixa ELLE ir. (Ribeiro, 1914, 262, grifos do autor)
Exemplo (8):
Os pronomes substantivos, em relação adverbial, nunca podem servir de sujeitos, nem mesmo nas phrases infinitivas que vêm depois de uma preposição. Em taes casos usa-se da relação subjectiva, ex.: Esta laranja é para EU comer.
Em certas zonas do Brazil pecca-se contra este preceito, dizendo-se: "Para MIM comer, etc". (Ribeiro, 1914, 263, grifos do autor)
Exemplo (9):
Toda a palavra que serve de objecto a um verbo põe-se em relação objectiva.
Como em Portuguez não se declinam substantivos, a applicação desta regra só se torna patente quando o objecto é representado por um pronome substantivo, ex.: Eu o vejo - Queres-ME muito.
Pôr em relação subjectiva o pronome substantivo que serve de objecto a um verbo, é erro comezinho no Brazil, até mesmo entre os doutos: ouvem-se a cada passo as locuções incorrectas: Eu vi elle - Espere eu. (Ribeiro, 1914, 264, grifos do autor)
Com efeito, os exemplos (7) e (8) estão incluídos na seção em que Ribeiro (1914) trata do sujeito.
Em (7), Ribeiro (1914, 262) critica o uso brasileiro - "é erro vulgar no Brazil" – de não respeitar o que estabelece a sintaxe das línguas românicas, vinda diretamente do Latim, ou seja, haveria de se observar que "o sujeito do verbo no infinito vai para o accusativo". Assim, teríamos, pela prescrição, a construção "Deixa-o ir" e não a opção, freqüente no Brasil, por "Deixa elle ir".
Quanto ao exemplo (8), Ribeiro (1914, 263) opõe-se ao uso brasileiro – "pecca-se contra este preceito" – que, muitas vezes, opta por colocar os pronomes substantivos em relação adverbial como sujeitos da oração. Tal escolha faz com que se construam frases como a seguinte: "Isto é para mim comer". De acordo com o autor, deve-se seguir a seguinte prescrição: "Em taes casos usa-se da relação subjectiva", que resulta na alteração da frase acima para: "Isto é para eu comer".
Já, em relação ao exemplo (9), o encontramos na seção destinada ao estudo do objeto. Novamente, Ribeiro (1914, 264) sanciona o uso brasileiro, mas, neste caso, observa que, apesar de estar fora da prescrição, ele é utilizado "até mesmo entre os doutos". A objeção feita pelo gramático refere-se à preferência dos brasileiros em "pôr em relação subjectiva o pronome substantivo que serve de objecto a um verbo". Tal opção leva a construção de frases como: "Eu vi elle na rua". A prescrição gramatical, por seu turno, aparece quando Ribeiro (1914, 264) lembra que "toda a palavra que serve de objecto a um verbo põe-se em relação objectiva", instrução que nos leva a construir a mesma frase, porém, da seguinte forma: "Eu vi-o na rua".
Com efeito, devemos destacar novamente a atualidade das observações feitas por Ribeiro relativamente ao Português do Brasil. Assim afirmamos, pois as construções fora da prescrição, mencionadas pelo autor, são, até hoje, realizadas e muito produtivas no Português do Brasil, notadamente em determinados estratos da sociedade.
Quanto às questões sintáticas levantadas por Ribeiro nos exemplos (7), (8) e (9), é preciso dizer que a despeito de a norma culta do Português continuar estabelecendo os mesmos referenciais expostos na Grammatica, pode-se ainda verificar, no Português do Brasil do século XXI, tal qual ocorreu com Ribeiro em seu tempo, os mesmos desvios ao que estabelece a norma culta quanto a esta questão. Em nossa sincronia, frequentemente são verificados exemplos iguais aos arrolados por Ribeiro (1914), como: "Isto é para mim comer" ou "Eu vi elle na rua".
Da mesma forma que faz Leite (2003), quando caracteriza Ribeiro em sua "tendência sociolinguística", cabe aqui a devida menção quanto à perspicácia do autor na observação e descrição de especificidades do Português, característica, com efeito, relativamente escassa entre os gramáticos.
Esgotadas, pois, as análises dos trechos selecionados da Grammatica comcernentes às diferenças do Português em Portugal e no Brasil, passemos, então, ao estudo dos trechos relativos às diferenças internas do próprio Português do Brasil.
Quanto às menções internas à variedade brasileira, devemos destacar que elas são, em sua grande parte, referentes ao Estado de São Paulo, local em que Ribeiro vivia.
Esquematicamente, temos oito destaques ao uso paulista do Português. Dentro deste grupo, há referências específicas ao falar sorocabano e aos caipiras. Em relação ao Estado de Minas Gerais, há três menções e, quanto à Bahia, apenas uma referência. Curiosamente, não encontramos nenhuma alusão ao falar do Rio de Janeiro, à época, capital do Império e importante Estado no que tangia aos estudos filológicos.
Assim dito, passemos em análise alguns trechos que tratam dos diferentes falares dentro do Brasil. Inicialmente, mostraremos os registros relativos a São Paulo.
Nos quatro exemplos que ora examinaremos, dois fazem referência a grupos sociais específicos do estado de São Paulo – os caipiras e os fazendeiros – e dois são menções gerais a usos particulares do Português em São Paulo. Vejamos, então, os exemplos (10) e (11).
Exemplo (10):
A clausula substantivo começa sempre pela conjuncção que, ou pela preposição de, ou por uma palavra interrogativa.
Nos escriptos classicos muitas vezes omitte-se a conjuncção que, ex.: "A grande reputação que Gil Vicente adquiriu entre seus contemporaneos e a celebridade que ainda hoje seu nome gosa entre os litteratos, junto á singularidade de suas obras, PARECE DEVERIAM ter animado a algum zeloso de nossa litteratura a emprehender uma nova edição deste nosso antigo escriptor (1)[10]".
Os caipiras de S. Paulo praticam frequentemente a mesma omissão, dizendo: PODIA ELLE VIESSE hoje, etc. (Ribeiro, 1914, 232, grifos do autor)
Exemplo (11):
Em logar do pronome da primeira pessôa do singular eu, usam os escriptores da fórma da primeira pessôa do plural nós. O verbo vai para o plural; os adjectivos em relação attributiva ou predicativa com esse pronome ficam no singular, ex.: Antes sejamos breve que prolixo.
Antigamente, dava-se geralmente o mesmo uso com o pronome da segunda pessôa; ainda hoje, neste Estado (S. Paulo), os velhos fazendeiros, conservadores tenazes dos habitos fidalgos de seus avós, usam de tal tratamento em relação aos inferiores a quem votam affecto. (Ribeiro, 1914, 252, grifos do autor)
No exemplo (10), encontramos o mesmo processo de abonação, ou seja, para justificar um determinado uso sincrônico, Ribeiro recorre à diacronia. Tal retrospecção, como vimos, é feita quando o autor recorre a algum aspecto da história da língua ou quando menciona algum escritor clássico e importante do Português.
Com efeito, mesmo que utilizados em sincronias diferentes, Ribeiro (1914, 232) abona historicamente aquilo que observou no uso dos caipiras de São Paulo: a omissão da preposição de ou da conjunção que no início das "clausulas substantivos". A justificativa para Ribeiro aceitar tal omissão pode ser encontrada no fato de que sua vernaculidade foi atestada pelos "escriptos clássicos [referência a Barreto Feio, quando de seu ‘Prólogo à edição de Gil Vicente’]".
No exemplo (11), Ribeiro mostra novamente sua aguda observação – sua "tendência sociolinguística" – uma vez que por seu intermédio podemos ter informações sobre outro grupo social de seu tempo: os fazendeiros de São Paulo.
No entanto, quanto ao processo de abonação, não há mudanças em seu procedimento que é, efetivamente, o mesmo apresentado no exemplo (10) e em outros exemplos aqui já analisados.
Neste caso, Ribeiro (1914, 252) analisa um uso específico dos escriptores de sua época. Tal uso seria a opção destes que no "logar do pronome da primeira pessôa do singular eu, usam [...] da fórma da primeira pessôa do plural nós". Assim procedendo, os escritores colocavam o verbo no plural, porém "os adjectivos em relação attributiva ou predicativa com esse pronome [nós] ficavam no singular". A aplicação deste recurso resulta em frases como: "Antes sejamos breve que prolixo".
Ribeiro (1914), como pôde ser visto no excerto em questão, além da exposição em si de tal uso, não analisa este recurso empregado pelos escritores. Podemos inferir, no entanto, que esta construção é estilística, uma vez que a ausência de concordância verbo-nominal, na frase arrolada pelo gramático, é proposital.
Além dos escritores, Ribeiro (1914, 252) nos informa que este uso peculiar é também encontrado em um outro grupo social - os velhos fazendeiros de São Paulo - porém, neste caso, construído com a segunda pessoa.
Efetivamente, no caso dos fazendeiros, Ribeiro (1914, 252) explica que a permanência deste uso, em sua sincronia, deve-se ao fato de que tais fazendeiros são "conservadores tenazes dos habitos fidalgos de seus avós", uma vez que "antigamente, dava-se geralmente o mesmo uso com o pronome da segunda pessôa; [sendo que] ainda hoje, [está presente] neste Estado (S. Paulo)". Ou seja, mais uma vez, o gramático justifica a produtividade sincrônica de uma determinada estrutura pela sua existência diacrônica.
Assim dito, passemos, então, aos outros dois trechos em que são feitas referências ao Português de São Paulo. Como já mencionamos, estas menções são gerais ao Estado, não delimitando, assim, nenhum grupo específico.
No primeiro caso, Ribeiro (1914, 97), ao falar dos diminutivos familiares, mostra que há uma variação lexical entre São Paulo e Minas Gerais, quanto ao termo senhora. Os paulistas usam o diminutivo nha, ao passo que os mineiros optam pelo sia.
Quanto ao segundo caso, ainda referindo-se a uma variação lexical entre estes dois Estados, Ribeiro (1914, 162) menciona que os termos diabo e diacho, além destas duas formações, encontram equivalentes em São Paulo sob a forma de dianho e, em Minas Gerais, como dialho.
Finalmente, encerrando as análises dos trechos relativos às diferenças internas do Português do Brasil, destacamos que Ribeiro, ao falar a respeito das partículas negativas, exemplifica um caso de uso comum aos Estados da Bahia e, novamente, de Minas Gerais.
Na prescrição gramatical, Ribeiro (1914, 300-301, grifos do autor) assevera que: "Não é a palavra de negação perfeita, ex.: NÃO posso – NÃO dou – NÃO". Porém, em seguida, ao comentar a prescrição que acabara de fazer, o gramático destaca existir, nos mencionados Estados, o processo de duplicação do não. Vejamos: "Em algumas provincias do Brasil, como Bahia, Minas não duplica- se ex.: NÃO posso, NÃO. NÃO dou, NÃO".
4. Considerações finais
Ao olharmos para a história da gramaticografia brasileira, a Grammatica, de Ribeiro, terá sempre um lugar de destaque face à importância que desempenhou. Como apontamos, há vários aspectos que fazem com que ela tenha a relevância acima mencionada, entre os quais podemos citar o pioneirismo quanto à gramatização do Português do Brasil e a ruptura epistemológica com o Racionalismo, modelo até então preponderante, representado, em termos linguísticos, pela Gramática Filosófica.
Tal rompimento é o que consideramos fundamental para haver as inclusões de marcas do Português do Brasil em seu texto gramatical. Ribeiro, ao se vincular teoricamente ao Naturalismo, passa a ver a língua como um ser vivo - um organismo que nasce, cresce e morre -algo, portanto, em constante evolução. Este seu olhar naturalista fez com que ele considerasse aquilo que empiricamente era observável, ou seja, algumas especificidades do Português praticado no Brasil. Apesar do rompimento com o Racionalismo, permanece, em sua Grammatica, o modelo Prescritivista. A presença destes dois modelos faz com que Ribeiro utilize-se de dois diferentes referenciais: a norma culta, por influência do Prescritivismo e o processo de vida e evolução das línguas, pela sua relação com o pensamento naturalista-evolucionista.
A condescendência do gramático com determinados usos que não estavam exatamente prescritos na norma culta pode ser vista como a aceitação de Ribeiro quanto à fatal lei da evolução linguística, contra qual ele nada poderia fazer. Nestes casos, Ribeiro acatou e registrou, em seu texto, aquilo que tributara a um processo intrínseco da própria língua, de sua natural evolução. Em outros momentos, Ribeiro assume o papel restritivo característico do Prescritivismo e estabelece aquilo que está certo e aquilo que está errado.
Há, portanto, quanto às posições gramaticais de Ribeiro, oscilação entre uma "aceitação evolutiva" e uma "restrição normativa". Tal aceitação evolutiva, com efeito, abriu espaço para que Ribeiro registrasse, em sua Grammatica, marcas do Português do Brasil relativas à hiperlíngua brasileira.
Referências bibliográficas
Arnauld & Lancelot. 2001[1. ed. 1660]. Gramática de Port-Royal. Tradução e prefácio Bruno F. Bassetto; Henrique G. Murachco, 2. ed., São Paulo: Martins Fontes.
Auroux, Sylvain. 1992. A revolução tecnológica da gramatização. Campinas: Editora da Unicamp.
Auroux, Sylvain. 1994. "A hiperlíngua e a externalidade da referência". En: Orlandi, Eni Puccinelli (org.) Gestos de leitura: da história no discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 241-251.
Auroux, Sylvain. 1998a. La raison, le langage et les normes. Paris: PUF.
Auroux, Sylvain. 1998b. "Língua e hiperlíngua". En: Língua e instrumentos linguísticos 1, jan./jun, 17-30.
Bassetto, Bruno F. & Murachco, Henrique G. 2001 [1. ed. 1660]. "Prefácio à edição brasileira". En: Arnauld & Lancelot. Gramática de Port-Royal. 2. ed., São Paulo: Martins Fontes.
Casassanta, Mário. 1946. Júlio Ribeiro e Maximino Maciel. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.
Chevalier, Jean-Claude. 1996. Histoire de la grammaire française. Paris: PUF.
Guimarães, Eduardo. 1996a. "Sinopse dos Estudos do Português no Brasil: a gramatização brasileira". En: Guimarães, Eduardo & Orlandi, Eni Puccinelli (eds.) Língua e cidadania: o português no Brasil. Campinas: Pontes, 127-138.
Faraco, Carlos Alberto. 2002. "Norma-padrão brasileira: desembaraçando alguns nós". En: Bagno, Marcos (ed.) Lingüística da norma. São Paulo: Edições Loyola, 37-61.
Hessen, Johannes. 1964 [1926]. Teoria do conhecimento. 3. ed., Coimbra: Arménio Amado Editor.
Leite, Marli Quadros. 2005. "A hiperlíngua brasileira na construção da norma gramatical: um estudo de gramáticas do século XIX". En: Estudios portugueses 5, 103-112.
Leite, Marli Quadros. 2007. "Anotações sobre dois autores brasileiros do século XIX: Júlio Ribeiro e João Ribeiro". Texto inédito.
Pinto, Edith Pimentel. 1978. O português do Brasil: textos críticos e teóricos 1-1820/1920-fontes para teoria e história. São Paulo: EDUSP.
Ribeiro, Julio. 1880. Traços geraes de linguistica. São Paulo: Abilio A. S. Marques – Editor.
Ribeiro, Julio. 1881. Grammatica portugueza. 1. ed., São Paulo: Typ. de Jorge Seckler.
Ribeiro, Julio. 1914. Grammatica portugueza. 12. ed., Rio de Janeiro/ São Paulo/ Bello Horizonte: Livraria Francisco Alves & C.
A gramatização do Português do Brasil na Grammatica portugueza, de Júlio Ribeiro (1881)*
1. Introdução
Edith Pimentel Pinto, em sua obra O Português do Brasil – vol. I, diz que:
É somente nos meados do século XIX, com Varnhagen [com o prólogo que o autor escreve para a publicação do seu Florilégio da poesia brasileira], que a língua do Brasil assume contornos de problema de interesse nacional e, concomitantemente, passa a constituir objeto de cogitação, para registro de uma realidade já consistente e documentável. (1978, XVI)
O deslocamento da discussão para o campo da literatura fez crescer o debate e a visibilidade desta questão, abrindo, assim, o caminho para que autores românticos como Gonçalves Dias (1823-1864) e José de Alencar (1829-1877) discutissem este assunto e reforçassem o valor do registro brasileiro da língua portuguesa.Com efeito, é justamente a partir do tema que suscitou esta discussão, ou seja, os aspectos referentes à realidade linguística brasileira, que propusemos o presente trabalho. Há de se destacar, no entanto, que nossos estudos estão circunscritos em um campo bem específico: a gramática tradicional.
Ao relacionarmos Português do Brasil e gramática, forçosamente, fomos levados à Grammatica portugueza, de Júlio Ribeiro (1845-1890), uma vez que este compêndio foi, em 1881, o primeiro a registrar de maneira substancial marcas relativas à variedade brasileira do Português, sendo, portanto, o primeiro a gramatizá-la.
Para realizar este estudo, nos atrelamos teórico-metodologicamente aos conceitos de Sylvan Auroux (1992;1998a), especificamente, no que tange ao processo de gramatização e à hiperlíngua e também no que diz respeito à significativa importância exercida pelos instrumentos linguísticos.
Quanto ao significado de gramatização, Auroux (1992, 65, grifos do autor) diz que "deve-se entender como o processo que conduz a descrever e a instrumentalizar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário". Com efeito, há ainda de se salientar a configuração de uma importante relação entre estes compêndios metalinguísticos e os usuários das línguas, motivo pelo qual este autor os denominou instrumentos linguísticos.
Já quanto à hiperlíngua, Auroux (1994, 243, grifos nossos) destaca que "em qualquer situação, ela [a hiperlíngua] é esta realidade última que engloba e situa toda realização linguística e limita concretamente toda inovação. [pois] Se os sujeitos não se compreendem, não há hiperlíngua".
Com efeito, se neste modelo proposto por Auroux, a hiperlíngua representa a totalidade de uma determinada língua, ou seja, como afirmou o autor, é a sua realidade última, podemos, assim, depreender que quando falamos sobre uma determinada hiperlíngua, estamos fazendo referência não apenas aos usos considerados cultos de uma língua, mas também aos usos tidos como não cultos.
Devemos aqui destacar, que normalmente as gramáticas tradicionais[1] se limitam apenas aos registros tidos como cultos de uma determinada hiperlíngua, deixando de fora os demais registros que não se enquadram no referencial da norma culta[2].
Ao incluir marcas do Português do Brasil em sua Grammatica, Ribeiro amplia o registro da hiperlíngua brasileira que normalmente era feito pelos compêndios gramaticais publicados em solo nacional, fato que torna seu trabalho digno de análise e de estudo mais detido.
Com efeito, a compreensão do processo acima destacado passa pela análise dos óbices que Ribeiro fazia ao modelo gramatical Racionalista ou, nas suas palavras, à metafísica.
2. A transição do Racionalismo para o Naturalismo na gramaticografia brasileira
O posicionamento crítico de Ribeiro (1914, I) quanto à metafísica[3] ficou conhecido pela frase por ele utilizada para abrir o prólogo da 2ª edição: "As antigas grammaticas portuguezas eram mais dissertações de metaphysica do que exposições dos usos da língua". Esta frase dá sequência a uma outra frase utilizada por Ribeiro (1881, 291, grifos nossos), na 1ª edição, para referir-se pejorativamente ao racionalismo da Gramática Filosófica: "Subtilezas só engendram confusão: em metaphysica cada qual discreteia a seu modo, e ha sempre tantas sentenças quantas são as cabeças".
Ribeiro realiza tais críticas justamente por conceber a língua e a gramática de forma distinta àquela proposta pelos metafísicos. Diferentemente do que era proposto por este modelo, Ribeiro se levanta contra a necessidade teórico-metodológico de o gramático submeter seus dados e seus estudos linguísticos à prova da razão. Ao dizer o que não aceitava em matéria de estudos sobre a linguagem, Ribeiro (1881, 291, grifos nossos) também aponta para aquilo que acha ser o único caminho possível para tais investigações: "As irregularidades, os idiotismos[4], os dizeres intimos de uma lingua só pelo estudo historico comparativo podem ser postos em luz, explicados, solvidos".
Este embate entre modelos gramaticais epistemologicamente diferentes pode ser compreendido em função de uma mudança de concepção quanto ao que seja científico, uma vez que Ribeiro nega os critérios de ciência do Racionalismo e liga-se aos valores do Empirismo, especialmente aos do Naturalismo.
Com efeito, não é exagerada a afirmação de que a concepção naturalista de língua adotada por Ribeiro é que comanda seu pensamento linguístico e que, desta forma, suas explicações gramaticais pautam-se nesta opção. Ribeiro parte da tese de que a língua é um organismo vivo estando, assim, sujeito ao nascimento, crescimento e morte.
A opção que Ribeiro fez pelo Naturalismo o colocou no âmbito teórico do Empirismo. A respeito deste último, Hessen (1964, 68-69) nos esclarece que:
O empirismo (de έμπειρία = experiência) opõe à tese do racionalismo (segundo a qual o pensamento, a razão, é a verdadeira fonte de conhecimento), a antítese que diz: a única fonte do conhecimento humano é a experiência. Na opinião do empirismo, não há qualquer património a priori da razão. A consciência cognoscente não tira os seus conteúdos da razão; tira-os exclusivamente da experiência. O espírito humano está por natureza vazio; é uma tábua rasa, uma folha em branco onde a experiência escreve. Todos os nossos conceitos, incluindo os mais gerais e abstratos, procedem da experiência. Enquanto que o racionalismo se deixa levar por uma ideia determinada, por uma ideia de conhecimento, o empirismo parte dos factos concretos.
Relativamente às ciências naturais, Hessen (1964, 69-70) nos mostra o quanto que elas se valem dos modelos analíticos propostos pelo Empirismo. Vejamos:
Enquanto que os racionalistas procedem da matemática a maior parte das vezes, a história do empirismo revela que os seus defensores procedem quase sempre das ciências naturais. Isto é compreensível. Nas ciências naturais a experiência representa papel decisivo. Nelas trata-se sobretudo de comprovar exactamente os factos mediante uma cuidadosa observação. O investigador está completamente entregue à experiência. É muito natural que quem trabalha de preferência ou exclusivamente com este método das ciências naturais, tenha tendência para de antemão colocar o factor empírico sobre o racional. Enquanto que o filósofo de orientação matemática chega fàcilmente a considerar o pensamento como a fonte única do conhecimento, o filósofo que vem das ciências naturais tenderá para considerar a experiência como fonte e base de todo o conhecimento humano.
A opção pelo método experimental é feita por Ribeiro (1880, 11, grifos do autor) na introdução de seu livro Traços geraes de linguistica, local em que ele faz a seguinte afirmação: "Os processos de investigação e verificação de que usa o homem consistem na observação e na experiencia cuja reunião constitue o methodo experimental. Os instrumentos do methodo experimental são os semtidos e o juizo".
Desta forma, podemos perceber como Ribeiro julga ser o adequado posicionamento de um pesquisador: inicialmente, deve lançar-se à observação dos fenômenos, depois refletir sobre eles, ou seja, os estuda (cria um juízo a respeito) e, finalmente, depois deste processo está habilitado a emitir suas considerações a respeito do fenômeno observado.
Desta forma, considerando a importância dada por Ribeiro à experiência empírica, é possível compreender o motivo que fez o autor incluir em seu texto gramatical algumas marcas aquilo que observava quanto a alguns usos linguísticos realmente praticados no Brasil, ou nos termos de Auroux (1994), da hiperlíngua brasileira.
Para um gramático empirista não seria possível ignorar aquilo que se impunha à sua experiência sensível, que, no seu caso, eram as especificidades do Português do Brasil.
3. A questão da língua portuguesa do Brasil na Grammatica portugueza, de Júlio Ribeiro
Já tendo apresentado o mencionado ineditismo de Ribeiro quanto aos registros da língua portuguesa praticada no Brasil, o presente trabalho se propõe, agora, a levantar e melhor compreender os fatores que conduziram o autor a tal façanha.
Apontando para a importância de Ribeiro para a gramaticografia brasileira, Leite (2005a, 104-105) assim se manifesta:
Efetivamente, o que nos interessa [em Júlio Ribeiro] é ter sido o autor um verdadeiro renovador da norma gramatical portuguesa, sob dois pontos de vista: o primeiro, do trabalho sobre algumas marcas da língua realmente praticada no Brasil e, depois, da renovação da teoria gramatical.
Com efeito, quanto ao processo destacado pela autora, apontamos para a nossa hipótese interpretativa: julgamos que a renovação da teoria gramatical foi a responsável direta pela presença, na Grammatica, de algumas marcas da língua realmente praticada no Brasil. Ou seja, julgamos que a consideração da hiperlíngua brasileira, por parte de Ribeiro, se deu em função de um movimento anterior de quebra e renovação das teorias que embasavam a maioria dos gramáticos da época, notadamente, os valores racionalistas da Gramática Filosófica.
Efetivamente, o modelo gramatical racionalista – que vigorava em solo nacional até final do século XIX[5] - não se ocupou em registrar, em compêndio, as marcas do Português do Brasil, mesmo que empiricamente as evidências linguísticas já apontassem para a presença de variações em relação ao Português de Portugal, com efeito, acumuladas ao longo de quatro séculos. Ou seja, nenhuma gramática filosófica do Português, mesmo as escritas por gramáticos brasileiros e aqui editadas, se ocupou em gramatizar o Português do Brasil.
Não se deve, porém, imputar culpa apenas ao Racionalismo pelo não registro gramatical das marcas da variedade brasileira do Português, uma vez que nas gramáticas particulares sempre há uma norma linguística a ser prescrita. A prescrição de uma determinada norma liga-se fortemente àquilo que é considerado como bom uso da língua em uma determinada época. Tal processo normativo é herdado de uma das principais características do modelo gramatical greco-latino.
Quanto à diversidade de modelos gramaticais no Brasil novecentista, Leite (2007b, 5, grifos da autora) diz que:
[...] fica exposta a barafunda gramatical que vigorava no Brasil no século XIX pela presença, em diversas obras, de métodos variados, seja o fundeado somente na teoria greco-latina (o prescritivista), seja o ancorado na teoria racional (o filosófico), seja o histórico (o historicista), que depois da publicação da gramática de Júlio Ribeiro, se difundiu pelas gramáticas brasileiras [...].
Quanto a Ribeiro, não é somente o seu viés empirista (que em termos epistemológicos está representado pela adesão à Gramática Histórico-Comparada) que aparecerá em sua Grammatica, mas também o viés prescritivista, normativo. Seu trabalho é, pois, uma oscilação entre estas duas vertentes, ou, em outros termos, Ribeiro encerra em si o gramático tradicional e o cientista da línguagem. Ora um se manifesta mais destacadamente, ora outro.
3.1 A evolução linguística e o processo de gramatização do Português do Brasil na Grammatica portugueza, de Júlio Ribeiro
Como indicamos no item anterior, as opções epistemológicas tomadas por Ribeiro trarão importantes consequências para o registro pioneiro da hiperlíngua brasileira em uma gramática. Ribeiro aceitou o princípio de que as línguas mudam, pois partiu, doutrinariamente, de uma concepção evolucionista-darwinista para o fenômeno da evolução linguística, e, assim, pôde abrir espaço para registrar, no corpo de sua Grammatica, tanto o processo de mudança linguística do Latim para o Português quanto o de variação linguística do Português de Portugal em relação ao Português do Brasil, como também de variações existentes internamente na variedade brasileira do Português.
A despeito da amplitude que o termo gramática pode encerrar, Auroux (1992, 66) toma o cuidado de bem delimitá-lo no âmbito do processo da gramatização. Vejamos:
Nós chamamos gramática de uma língua L, algo como o que fez Panini para o sânscrito; Dionísio de Trácia e Apolônio para o grego; Varrão, Donato e Prisciano para o latim e Sibawayhi e seus sucessores para o árabe. Uma gramática contém (pelo menos): a. uma categorização das unidades; b. exemplos; c. regras mais ou menos explícitas para construir enunciados (os exemplos escolhidos podem tomar seu lugar).
Com efeito, ainda falando sobre a gramática e sua importância para a descrição das línguas, Auroux (1992, 66) salienta o papel que exercem as regras em tais compêndios, principalmente, na relação existente entre a gramática e a realidade linguística. Vejamos:
As regras podem ser encaradas como prescrições (diga..., não diga ..., diz-se...) que não possuem nenhum valor de verdade ou como descrições (na língua L..., é enunciado correto, eles dizem...). É fácil passar do primeiro para o segundo tipo de formulação, o que explica que nunca existe, entre uma série de gramáticas prescritivas e uma outra série de gramáticas descritivas da mesma língua, a absoluta solução de continuidade que aí vê a historiografia tradicional: um certo saber se conserva sempre. Toda gramática equivale pois a um corpus (mais ou menos explícito) de afirmações suscetíveis de serem verdadeiras ou falsas. É por aí que ela é uma descrição linguística.
Assim dito, uma vez que o gramático, tanto nas gramáticas prescritivas quanto nas descritivas, detém a prerrogativa de definir seu corpus, seu exemplário, bem como as observações que fará sobre ele, tais comentários sobre a língua são necessariamente pautados em determinadas regras, mesmo considerando que em alguns casos elas não encontrem unanimidade entre os próprios gramáticos.
Deste processo, podemos depreender que, se a noção de regra está presente em qualquer mecanismo de descrição gramatical, os referenciais de correção em uma determinada língua não serão os mesmos quando nela houver uma gramática.
Em relação aos impactos que uma possível ausência de gramática acarreta em uma língua, Auroux (1992, 69) salienta o fato de que tal inexistência aumenta o leque de possibilidades quanto à variação linguística. Vejamos:
Em um espaço linguístico vazio, ou praticamente vazio, de intervenções tecnológicas [referência à gramática e ao dicionário], a liberdade de variação é evidentemente muito grande e as descontinuidades dialetais, que afetam essencialmente traços que não se recobrem, são pouco claras. A gramatização, geralmente se apoiando sobre uma discussão do que seja o "bom uso" vai reduzir esta variação. Basta considerar, para cada uma das línguas europeias, a série dos gramáticos, do século XVI ao fim do século XVII, para ver como se reduzem as diferentes variantes de uma mesma forma até desaparecerem.
Como pôde ser visto, para Auroux (1992), a gramática está longe de ser apenas um repositório passivo de regras e usos de uma determinada língua. Efetivamente, ela está inserida em um processo contínuo de instrumentalização tecnológica da fala natural. Em função da importância que este processo desempenha quanto à variação das línguas, Auroux (1992, 69-70, grifos do autor), no bojo de seus estudos sobre a gramatização, denominou a gramática – bem como o dicionário – como instrumentos linguísticos. Vejamos as palavras do autor quanto a este processo:
A gramática não é uma simples descrição da linguagem natural, é preciso concebê-la também como um instrumento linguístico: do mesmo modo que um martelo prolonga o gesto da mão, transformando-o, uma gramática prolonga a fala natural e dá acesso a um corpo de regras e de formas que não figuram junto na competência de um mesmo locutor. Isto é ainda mais verdadeiro acerca dos dicionários: qualquer que seja minha competência linguística, não domino certamente a grande quantidade de palavras que figuram nos grandes dicionários monolíngues que serão produzidos a partir do final do Renascimento (o contrário tornaria estes dicionários inúteis a qualquer outro fim que não fosse a aprendizagem de línguas estrangeiras). Isto significa que o aparecimento dos instrumentos linguísticos não deixa intactas as práticas linguísticas humanas.
Com efeito, podemos afirmar que da mesma forma que Fernão de Oliveira (1507-1581) e João de Barros (1496-1570) foram os primeiros autores a gramatizar o Português, respectivamente, em 1536 e 1540[6], Ribeiro, ao lançar sua Grammatica portugueza, em 1881, foi o primeiro autor a gramatizar o Português do Brasil, uma vez que, como já salientamos, ele foi o primeiro a registrar na gramática tradicional marcas da variedade brasileira do Português. Tais traços eram, até então, solenemente ignorados pelos gramáticos, mesmo por aqueles que eram brasileiros e editavam seus trabalhos em solo nacional, como foi o caso do maranhense Sotero dos Reis, importante gramático à época de Ribeiro.
Devemos aqui sublinhar que o processo de gramatização do Português do Brasil, acima destacado, foi realizado por um modelo gramatical até então inédito na gramaticografia brasileira e que foi inaugurado por Ribeiro, em 1881: a Gramática Histórico-Comparada.
Para que tal autor pudesse levar a cabo um estudo gramatical em que seus valores evolucionistas-darwinistas fossem contemplados e desenvolvidos – principalmente, em relação à recuperação dos estágios evolutivos antigos do Português e suas implicações na sincronia da língua portuguesa - Ribeiro encontrou condições ideais para tal tarefa justamente nas proposições teóricas e nos métodos de estudo utilizados pelo modelo histórico-comparatista.
Efetivamente, para Ribeiro, os métodos apregoados pela Gramática Filosófica e até então vigentes no Brasil - final do século XIX - não eram suficientes ou mesmo adequados para seus propósitos analíticos, que como já dissemos, eram de teor evolucionista-darwinista.
Diferentemente do que ocorria no modelo racionalista, a concepção naturalista de língua, por tratá-la como um ser vivo, estabelece relações de parentesco, biologicamente consideradas, entre as diversas línguas existentes. Neste sentido, o intuito dos linguistas-naturalistas era o de reconstruir estes parentescos linguísticos, perdidos ao longo do tempo, para que, assim, servissem na compreensão de como estas relações se manifestavam no presente das línguas. Para realizar tal estudo, a utilização dos métodos propostos pela Gramática Histórico-Comparada serviu para que muitos linguistas-naturalistas pudessem levar a cabo os objetivos de análise acima destacados.
Dito de uma outra forma, podemos dizer que o surgimento da Gramática Histórico-Comparada constituiu uma importante ferramenta de análise para os estudiosos que concebiam as línguas como organismos vivos e, assim, passíveis de evolução.
3.1.1 Hiperlíngua brasileira e os registros do Português do Brasil
Como afirmou Leite (2005a), Ribeiro foi o primeiro gramático a considerar a hiperlíngua brasileira no âmbito de uma gramática tradicional.
Devemos aqui destacar, que normalmente as gramáticas tradicionais se limitam apenas aos registros tidos como cultos de uma determinada hiperlíngua, deixando de fora os demais registros que não se enquadram no referencial da norma culta.
Como já sabemos, este tratamento assimétrico, dado aos diferentes registros de uma determinada língua, emana da origem histórica da gramática tradicional, notadamente do modelo greco-latino, que era fundamentado no eixo da prescrição gramatical. Efetivamente, para que haja prescrição em uma língua deve necessariamente existir um referencial que a oriente. No caso das gramáticas tradicionais sua orientação é a de atender aos ditames estabelecidos pela norma culta.
Porém, mesmo que assim procedam, muitas gramáticas tradicionais acabam registrando alguns usos não cultos de uma determinada língua, mesmo que normalmente isso seja feito com o intuito de criticá-los. Desta forma, a despeito de repreenderem tais usos, estas gramáticas acabam por ampliar, em seus textos, o leque de considerações sobre a hiperlíngua da língua estudada, uma vez que incluem, mesmo que para sancioná-los, usos da língua considerados como não cultos.
No que tange a hiperlíngua brasileira, Ribeiro registrou, como normalmente faz um gramático, a norma culta do Português, que, em sua época, tinha seu valor referencial definido única e exclusivamente pela norma lusitana. Porém, além dos usos cultos, ou seja, aqueles ligados a Portugal, Ribeiro trouxe também para seu compêndio marcas do Português utilizado no Brasil, inclusão que, como já destacamos, foi pioneira na gramaticografia brasileira, mesmo considerando que, em alguns casos, o uso brasileiro do Português mereceu reparos ou mesmo críticas por parte de Ribeiro.
Com efeito, tal gesto foi de grande importância, uma vez que as gramáticas brasileiras até 1881, especialmente as de base filosófica, simplesmente ignoravam a realidade linguística brasileira, mesmo que fosse para criticá-la.
Ao fazer menção a usos típicos da variedade brasileira do Português, Ribeiro abre espaço para o início de uma longa discussão sobre a nacionalidade linguística brasileira, levada a cabo intensamente, em território nacional, na primeira metade do século XX.
Quanto à presença de tais usos na Grammatica, preliminarmente, realizamos um levantamento numérico-descritivo destes, atitude que nos mostrou o seguinte cenário:
- 12 menções a usos específicos dos brasileiros em geral, sem especificar, nestes casos, uma região do país ou algum grupo social determinado. Estas referências são feitas, na Grammatica, pelo emprego dos termos Brazil, Brasil (grafou duas vezes com s) ou brazileiros.
- 8 menções a usos peculiares do estado de São Paulo. Neste grupo, há 3 referências ao uso deste estado, sem determinar região ou grupo social, 2 menções ao uso dos caipiras de S. Paulo, 2 menções que contrastam o uso de uma determinada estrutura entre São Paulo e Minas Gerais e 1 menção a um uso específico da cidade paulista de Sorocaba.
- 3 menções ao usos peculiares do estado de Minas Geraes. Além dos 2 casos acima mencionados, Ribeiro inclui um outro, só que, desta vez, estabelecendo o contraste do uso de uma determinada estrutura com o estado da Bahia.
- 5 menções a usos peculiares dos caipiras, mas nestes casos não há especificação de que região do Brasil são tais caipiras, tal qual foi feito nas referências aos caipiras de S. Paulo. Em uma destas 5 menções, há uma em que junto com os caipiras, Ribeiro refere-se aos escravos. Devemos, aqui, salientar que a despeito da não especificação regional nestas 5 menções, as atrelamos ao Português do Brasil, uma vez que Ribeiro (1914, 305, grifos do autor) utiliza-se, em seu texto, de recursos que podem ratificar tal inclusão. Por exemplo, o uso do pronome nós, como na frase: "[...] usadissimas entre nós pelos caipiras [...]".
Quanto ao segundo ponto, nos chamou a atenção o posicionamento do gramático quanto à sanção ou não destes usos variantes observados e descritos por ele em sua Grammatica.
A apresentação dos resultados da análise das 28 referências acima mencionadas, que ora passaremos a fazer, foi organizada da seguinte forma: estudo da seleção dos trechos mais representativos quanto às diferenças de uso do Português em Portugal e no Brasil e, depois, estudo da seleção de trechos relativos às diferenças internas do próprio Português do Brasil. Conjuntamente a tais análises, incluiremos nossas observações no que diz respeito ao posicionamento normativo do gramático, ou seja, se ele sancionou ou não os usos que arrolou em sua Grammatica e que foram, por nós, selecionados.
Assim dito, passemos, então, à análise dos trechos em que são confrontadas por Ribeiro diferentes realizações linguísticas do Português em Portugal e no Brasil.
Neste primeiro grupo de trechos da Grammatica, as diferenças apontadas por Ribeiro são de nível fonológico. Ali, Ribeiro (1914) acentua um fato relevante quanto às diferenças de registro entre estes dois países: suas diferentes prosódias. Vejamos:
Exemplo (1):
A voz tonica commum i representa-se: [(1) e (2)] 3) por e, na terminação de todos os vocabulos barytonos e na conjuncção e, ex.: cidade -mosarabe - montes e valles, que se leêm cidadi – mosarabi - montis e valis.
A maioria dos Brazileiros assim pronuncía: em Portugal diz-se – cidade - mosárabê - montês ê vallês, dando á voz terminal um som abafado, muito distincto de i. (Ribeiro, 1914, 31, grifos do autor)
Exemplo (2):
O diphthongo nasal ãe representa-se sempre por ãe, ex.: capitães - mãe.
Os portuguezes pronunciam em final como o diphthongo ãe: vem dahi a rima, tão estranha aos ouvidos brazileiros, de mãe com ninguem, tambem, etc. ex.:
"Triste de quem der um ai
Sem achar echo em ninguem!
Felizes os que têm pae,
Mimosos os que têm mãe! (1)[7]" (Ribeiro, 1914, 53, grifos do autor)
Exemplo (3):
Alteram-se os vocabulos por addicção, por eliminação, por transposição, e por absorpção, de vozes ou de modificações.
A absorpção da voz livre pura que termina um vocabulo pela voz livre inicial do vocabulo seguinte chama-se synalepha, ex.: da, mo, por de-a me-o.
A synalepha não se effectua quando está sob o accento tonico a voz livre terminal do primeiro vocabulo, nem tampouco na inserção por tmese de pronomes em verbos.
A pratica da synalepha é mais seguida em Portugal do que no Brazil; todavia ella é de rigor na leitura corrente, bem como a ligação dos vocabulos quando seus elementos o permittem, ex.:
‘Dom donzel, onde é que está el-rei? dizia Affonso Domingues ao pagem’. (ALEXANDRE HERCULANO).
lê-se:
Dom donzé londé questá el-rei ? dizí Affonso Domingue záo pagem. (Ribeiro, 1914, 25-26, grifos do autor)
Não há nos exemplos (1), (2) e (3) significativa tomada de posição de Ribeiro quanto à definição de qual prosódia é mais adequada. Como pôde ser visto, o tom do gramático é mais descritivo, do que sancionador, mesmo que, no exemplo (1), a pronúncia brasileira para a "voz tonica commum do i" faça parte do terceiro item da prescrição gramatical. Com efeito, não há sanção ao uso prosódico de Portugal, fazendo, assim, que a inclusão da prosódia brasileira, no corpo da gramática, represente mais uma atitude de abonar esta realização fonológica brasileira, do que uma sanção ao uso português.
No próximo grupo de exemplos (4), (5) e (6) podemos perceber a questão da evolução linguística do Português de forma bastante clara. Isto se deve ao fato de tratarem da passagem, da evolução do Latim para o Português, ou seja, tratam do que hoje estudamos sob o nome de mudança linguística. A ideia de evolução das línguas também aparece quando Ribeiro introduz suas observações quanto ao uso brasileiro do Português. Com efeito, ao contrastar, sincronicamente, diferentes usos do Português – em Portugal e no Brasil - Ribeiro fez referência ao processo hoje denominado variação linguística.
Os exemplos (4), (5) e (6) estão localizados na seção sobre Etymologia, da Grammatica. No exemplo (4), encontramos as referências ao Português do Brasil em um longo tópico de Ribeiro (1914, 156) sobre a "passagem do Latim para o Portuguez", evolução estudada em 23 itens. Especificamente, tais referências ao uso brasileiro são encontradas nos itens 14 e 17 do referido tópico. Vejamos, então, o item 14:
Exemplo (4):
14) dissolução em voz livre da primeira de duas modificações que actuam sobre a mesma voz [referência às mudanças fonéticas do Latim para o Português].
A modificação dissolvida fica formando diphthongo com a voz precedente. C, g, l, p, iniciaes de grupos modificativos, dissolvem-se em i: noite de nocte; reinar de regnare; buitre, escuitar (fórma antiga e usada ainda no Brazil), fruita (fórma antiga e ainda usada no Brazil), muito, de vulture, ascultare, fructu, multo; conceito de concepto. X divide-se em cs: c dissolve-se em i, e s assume a fórma graphica de x com valor de ch; eixo, de axe, teixo de taxo. O mesmo acontece com os grupos ct, ps, cs, ss: feito de facto; caixa de capsa; feixe de fasce; paixão de passione.
Sobre a voz que precede a modificação dissolvida, ha a notar:
[(a) e (b)] c) a voz a antes de i, resultante da dissolução de l, converte-se em o, formando o diphthongo oi: coice de calce; foice de falce.
Na mór parte dos casos, a dissolução depois de o, além de ser em i, póde tambem ser em u: noite ou noute, coice ou couce, foice ou fouce. Todavia ha fórmas immoveis consagradas pelo uso: diz-se sempre oito e não outo; Outubro, douto e não Oitubro, doito.
Depois de u é rara a dissolução de c em i; todavia ha exemplos, como os acima citados--escuitar, fruito, que se encontram em Camões e são vigentes no Brazil.
Neste caso de dissolução, a voz precedente u converte-se por vezes em o: aloitar, loitar (em Portuguez antigo, no dialecto Gallego e ainda hoje no interior do Brazil) por luctar de luctare. (Ribeiro, 1914, 160, grifos do autor)
Mais à frente, também na seção sobre Etymologia, encontramos os exemplos (5) e (6), nos quais as referências ao uso brasileiro do Português aparecem, respectivamente, em subseções que versam sobre o "estudo historico da conjugação regular portugueza" e sobre o "processo de formação dos verbos portuguezes". Vejamos:
Exemplo (5):
2) Gerundio.
1.ª CONJUGAÇÃO 2 .ª 3 .ª 4 .ª
Cant-ANDO Vend-ENDO Part-INDO P-on-DO
O infinito gerundio portuguez é derivado da fórma ablativa do gerundio latino amando, monendo, etc. (1)
(1) O gerundio latino, que é, por assim dizer, uma verdadeira declinação do nome verbal infinito presente, passou para o romanico na fórma ablativa. Que o gerundio é o mesmo que o infinito presente acompanhado de preposição, prova-se pelas seguintes identicas phrases: Vi-o chorando (Brasil), vi-o a chorar (Portugal). (Ribeiro, 1914, 210, grifos do autor)
Exemplo (6):
Por derivação[8], formam-se verbos:
1) de substantivos: de trabalho, trabalhar; de dama, damejar; (J. FERR., Aul., 12 v); de caminho, caminhar; de numero, numerar; de purpura, purpurar; de pavão, pavonear; etc.
Galopar (Portugal) andar a galope; galopear (Brazil) andar a galope, e tambem, com sentido transitivo, principiar a domar uma cavalgadura, montando-a pelas primeiras tres vezes. (Ribeiro, 1914, 214, grifos do autor)
Como pôde ser visto, o processo de evolução, nos exemplos (4), (5) e (6), representado pela variação linguística entre o Português de Portugal e do Brasil, não são sancionados por Ribeiro, ao contrário, o gramático fundamenta os mencionados usos brasileiros com abonações históricas da língua. Há, em cada exemplo, especificidades que merecem, pois, análises individualizadas.
No exemplo (4), devemos salientar o emprego do recurso acima mencionado, aliás, frequentemente utilizado por Ribeiro em sua Grammatica. Isto ocorre quando o gramático comenta alguns usos vigentes à época, no Brasil, notadamente determinadas estruturas caras aos caipiras ou aos habitantes do interior. Tais usos, segundo se nota nas observações do gramático, existiam em outros períodos históricos do Português e sua permanência, sincronicamente observável na fala destes grupos, representa a preservação de resquícios históricos da língua.
Assim, ao analisar estas estruturas que não faziam mais parte da sincronia do Português e, tampouco, estavam previstas na prescrição gramatical, Ribeiro não as classifica como incorretas, apenas as circunscreve a um determinado grupo de falantes, como por exemplo, os caipiras ou os brasileiros interioranos.
As formas mencionadas por Ribeiro (1914, 160) neste exemplo são: fruita, escuitar e loitar (aloitar). Os dois primeiros termos são caracterizados como "fórma antiga e ainda usada no Brazil" salientando também que "se encontram em Camões e são vigentes [ainda] no Brazil". Já quanto ao terceiro termo, o autor diz que é um vocábulo do "Portuguez antigo, [presente] no dialecto Gallego e ainda hoje [também presente] no interior do Brazil".
Para explicar a presença destes termos em sua sincronia, Ribeiro recorre à história da língua, mostrando que tais formas podem ser explicadas ao se examinar algumas regras relativas à mudança fonética do Latim para o Português. No caso de fruito e escuitar, o gramático explica que houve nas formas latinas fructu e ascultare, respectivamente, a "dissolução" do c e do l em i. Já quanto à loitar (aloitar), Ribeiro (1914, 160) diz que "neste caso de dissolução, a voz precedente u converte-se por vezes em o". Aplicada esta regra, teríamos a seguinte evolução terminológica: luctar> luitar > loitar.
Com efeito, apesar de Ribeiro mencionar que tais vocábulos são característicos do Português antigo ou mesmo restritos ao interior do país, sua atitude de recorrer à história da língua para explicar, desenvolvidamente, sua permanência no uso do Português do Brasil, mostra a complacência de Ribeiro quanto às transformações/evoluções ocorridas no Português, desde que encontrem explicações históricas que as justifiquem.
No exemplo (5), Ribeiro (1914, 210, grifos nossos), ao falar do "infinito", o divide em "infinito presente" e "infinito gerundio". De acordo com o gramático, os portugueses preferem a primeira forma, ao passo que os brasileiros, a segunda. Tal escolha fazia os portugueses optarem por "Vi-o a chorar" e os brasileiros por "Vi-o chorando". Ribeiro (1914, 210, grifos nossos) equipara valorativamente as duas construções, dizendo: "Que o gerundio é o mesmo que o infinito presente acompanhado de preposição, prova-se pelas seguintes identicas phrases [cita as duas frases acima mencionadas]".
Como pôde ser visto no trecho deste exemplo, novamente a abonação de Ribeiro, quanto a um uso sincronicamente observável no Português do Brasil, vem da história da língua, justificada pelo processo de evolução do Latim para o Português.
Convém ainda destacar que esta observação de Ribeiro é atualíssima, uma vez que tais preferências permanecem inalteradas até hoje. Os portugueses continuam utilizando-se da construção [preposição + infinitivo] e os brasileiros, preferencialmente, continuam empregando o gerúndio.
Assim dito, passemos, então, ao exemplo (6), que é a próxima referência quanto aos diferentes usos do Português no Brasil e em Portugal e está localizada em uma subseção da Grammatica que estuda o "processo de formação dos verbos portuguezes". Neste local, Ribeiro (1914, 214, grifos do autor) diz que tal processo se dá por duas formas distintas: derivação e composição.
Do processo de derivação[9], o autor destaca a existência de duas formas variantes para o verbo galopar. Vejamos: "Galopar (Portugal) andar a galope; galopear (Brazil) andar a galope, e tambem, com sentido transitivo, principiar a domar uma cavalgadura, montando-a pelas primeiras tres vezes".
Relativamente ao exemplo acima destacado, podemos dizer que a posição de Ribeiro tende à neutralidade quanto às formas variantes do termo galopar, uma vez que além da descrição do processo em si, não há outros elementos no texto que indiquem a valoração ou a sanção do gramático quanto a uma delas.
Com efeito, se no âmbito fono-morfológico há complacência de Ribeiro quanto às mudanças motivadas pela evolução do Português, o mesmo não ocorre no que diz respeito à sintaxe.
Nesta seção da Grammatica, encontramos as únicas sanções que Ribeiro (1914, 262-264) faz, declaradamente, quanto aos usos brasileiros do Português. Tais reprovações aparecem sob a rubrica de "é erro vulgar", "pecca-se contra este preceito" e "é erro comezinho". Vejamos, então, o conteúdo destas críticas, nos exemplos (7), (8) e (9):
Exemplo (7):
Toda a palavra que serve de sujeito a um verbo põe-se em relação subjectiva. Como em Portuguez não se declinam os substantivos, a applicação desta regra só se torna patente quando o sujeito é um pronome substantivo, ex.: EU vejo as arvores - TU queres pão. Ha a notar as seguintes excepções: 1) O pronome substantivo sujeito de um verbo no infinito, dependente de um verbo no finito (chamam-se finitos os quatro modos, - indicativo, imperativo, condicional e subjunctivo), põe-se em relação objectiva, ex.: Eu vi-O caminhar ás pressas - Deixa-O ir.
Esta syntaxe, commum a varias linguas romanicas, é tomada directamente do Latim, em o qual o sujeito do verbo no infinito vai para o accusativo. E' erro vulgar no Brazil usar-se em casos taes da relação subjectiva: diz-se, por exemplo: Vi ELLE caminhar ás pressas. - Deixa ELLE ir. (Ribeiro, 1914, 262, grifos do autor)
Exemplo (8):
Os pronomes substantivos, em relação adverbial, nunca podem servir de sujeitos, nem mesmo nas phrases infinitivas que vêm depois de uma preposição. Em taes casos usa-se da relação subjectiva, ex.: Esta laranja é para EU comer.
Em certas zonas do Brazil pecca-se contra este preceito, dizendo-se: "Para MIM comer, etc". (Ribeiro, 1914, 263, grifos do autor)
Exemplo (9):
Toda a palavra que serve de objecto a um verbo põe-se em relação objectiva.
Como em Portuguez não se declinam substantivos, a applicação desta regra só se torna patente quando o objecto é representado por um pronome substantivo, ex.: Eu o vejo - Queres-ME muito.
Pôr em relação subjectiva o pronome substantivo que serve de objecto a um verbo, é erro comezinho no Brazil, até mesmo entre os doutos: ouvem-se a cada passo as locuções incorrectas: Eu vi elle - Espere eu. (Ribeiro, 1914, 264, grifos do autor)
Com efeito, os exemplos (7) e (8) estão incluídos na seção em que Ribeiro (1914) trata do sujeito.
Em (7), Ribeiro (1914, 262) critica o uso brasileiro - "é erro vulgar no Brazil" – de não respeitar o que estabelece a sintaxe das línguas românicas, vinda diretamente do Latim, ou seja, haveria de se observar que "o sujeito do verbo no infinito vai para o accusativo". Assim, teríamos, pela prescrição, a construção "Deixa-o ir" e não a opção, freqüente no Brasil, por "Deixa elle ir".
Quanto ao exemplo (8), Ribeiro (1914, 263) opõe-se ao uso brasileiro – "pecca-se contra este preceito" – que, muitas vezes, opta por colocar os pronomes substantivos em relação adverbial como sujeitos da oração. Tal escolha faz com que se construam frases como a seguinte: "Isto é para mim comer". De acordo com o autor, deve-se seguir a seguinte prescrição: "Em taes casos usa-se da relação subjectiva", que resulta na alteração da frase acima para: "Isto é para eu comer".
Já, em relação ao exemplo (9), o encontramos na seção destinada ao estudo do objeto. Novamente, Ribeiro (1914, 264) sanciona o uso brasileiro, mas, neste caso, observa que, apesar de estar fora da prescrição, ele é utilizado "até mesmo entre os doutos". A objeção feita pelo gramático refere-se à preferência dos brasileiros em "pôr em relação subjectiva o pronome substantivo que serve de objecto a um verbo". Tal opção leva a construção de frases como: "Eu vi elle na rua". A prescrição gramatical, por seu turno, aparece quando Ribeiro (1914, 264) lembra que "toda a palavra que serve de objecto a um verbo põe-se em relação objectiva", instrução que nos leva a construir a mesma frase, porém, da seguinte forma: "Eu vi-o na rua".
Com efeito, devemos destacar novamente a atualidade das observações feitas por Ribeiro relativamente ao Português do Brasil. Assim afirmamos, pois as construções fora da prescrição, mencionadas pelo autor, são, até hoje, realizadas e muito produtivas no Português do Brasil, notadamente em determinados estratos da sociedade.
Quanto às questões sintáticas levantadas por Ribeiro nos exemplos (7), (8) e (9), é preciso dizer que a despeito de a norma culta do Português continuar estabelecendo os mesmos referenciais expostos na Grammatica, pode-se ainda verificar, no Português do Brasil do século XXI, tal qual ocorreu com Ribeiro em seu tempo, os mesmos desvios ao que estabelece a norma culta quanto a esta questão. Em nossa sincronia, frequentemente são verificados exemplos iguais aos arrolados por Ribeiro (1914), como: "Isto é para mim comer" ou "Eu vi elle na rua".
Da mesma forma que faz Leite (2003), quando caracteriza Ribeiro em sua "tendência sociolinguística", cabe aqui a devida menção quanto à perspicácia do autor na observação e descrição de especificidades do Português, característica, com efeito, relativamente escassa entre os gramáticos.
Esgotadas, pois, as análises dos trechos selecionados da Grammatica comcernentes às diferenças do Português em Portugal e no Brasil, passemos, então, ao estudo dos trechos relativos às diferenças internas do próprio Português do Brasil.
Quanto às menções internas à variedade brasileira, devemos destacar que elas são, em sua grande parte, referentes ao Estado de São Paulo, local em que Ribeiro vivia.
Esquematicamente, temos oito destaques ao uso paulista do Português. Dentro deste grupo, há referências específicas ao falar sorocabano e aos caipiras. Em relação ao Estado de Minas Gerais, há três menções e, quanto à Bahia, apenas uma referência. Curiosamente, não encontramos nenhuma alusão ao falar do Rio de Janeiro, à época, capital do Império e importante Estado no que tangia aos estudos filológicos.
Assim dito, passemos em análise alguns trechos que tratam dos diferentes falares dentro do Brasil. Inicialmente, mostraremos os registros relativos a São Paulo.
Nos quatro exemplos que ora examinaremos, dois fazem referência a grupos sociais específicos do estado de São Paulo – os caipiras e os fazendeiros – e dois são menções gerais a usos particulares do Português em São Paulo. Vejamos, então, os exemplos (10) e (11).
Exemplo (10):
A clausula substantivo começa sempre pela conjuncção que, ou pela preposição de, ou por uma palavra interrogativa.
Nos escriptos classicos muitas vezes omitte-se a conjuncção que, ex.: "A grande reputação que Gil Vicente adquiriu entre seus contemporaneos e a celebridade que ainda hoje seu nome gosa entre os litteratos, junto á singularidade de suas obras, PARECE DEVERIAM ter animado a algum zeloso de nossa litteratura a emprehender uma nova edição deste nosso antigo escriptor (1)[10]".
Os caipiras de S. Paulo praticam frequentemente a mesma omissão, dizendo: PODIA ELLE VIESSE hoje, etc. (Ribeiro, 1914, 232, grifos do autor)
Exemplo (11):
Em logar do pronome da primeira pessôa do singular eu, usam os escriptores da fórma da primeira pessôa do plural nós. O verbo vai para o plural; os adjectivos em relação attributiva ou predicativa com esse pronome ficam no singular, ex.: Antes sejamos breve que prolixo.
Antigamente, dava-se geralmente o mesmo uso com o pronome da segunda pessôa; ainda hoje, neste Estado (S. Paulo), os velhos fazendeiros, conservadores tenazes dos habitos fidalgos de seus avós, usam de tal tratamento em relação aos inferiores a quem votam affecto. (Ribeiro, 1914, 252, grifos do autor)
No exemplo (10), encontramos o mesmo processo de abonação, ou seja, para justificar um determinado uso sincrônico, Ribeiro recorre à diacronia. Tal retrospecção, como vimos, é feita quando o autor recorre a algum aspecto da história da língua ou quando menciona algum escritor clássico e importante do Português.
Com efeito, mesmo que utilizados em sincronias diferentes, Ribeiro (1914, 232) abona historicamente aquilo que observou no uso dos caipiras de São Paulo: a omissão da preposição de ou da conjunção que no início das "clausulas substantivos". A justificativa para Ribeiro aceitar tal omissão pode ser encontrada no fato de que sua vernaculidade foi atestada pelos "escriptos clássicos [referência a Barreto Feio, quando de seu ‘Prólogo à edição de Gil Vicente’]".
No exemplo (11), Ribeiro mostra novamente sua aguda observação – sua "tendência sociolinguística" – uma vez que por seu intermédio podemos ter informações sobre outro grupo social de seu tempo: os fazendeiros de São Paulo.
No entanto, quanto ao processo de abonação, não há mudanças em seu procedimento que é, efetivamente, o mesmo apresentado no exemplo (10) e em outros exemplos aqui já analisados.
Neste caso, Ribeiro (1914, 252) analisa um uso específico dos escriptores de sua época. Tal uso seria a opção destes que no "logar do pronome da primeira pessôa do singular eu, usam [...] da fórma da primeira pessôa do plural nós". Assim procedendo, os escritores colocavam o verbo no plural, porém "os adjectivos em relação attributiva ou predicativa com esse pronome [nós] ficavam no singular". A aplicação deste recurso resulta em frases como: "Antes sejamos breve que prolixo".
Ribeiro (1914), como pôde ser visto no excerto em questão, além da exposição em si de tal uso, não analisa este recurso empregado pelos escritores. Podemos inferir, no entanto, que esta construção é estilística, uma vez que a ausência de concordância verbo-nominal, na frase arrolada pelo gramático, é proposital.
Além dos escritores, Ribeiro (1914, 252) nos informa que este uso peculiar é também encontrado em um outro grupo social - os velhos fazendeiros de São Paulo - porém, neste caso, construído com a segunda pessoa.
Efetivamente, no caso dos fazendeiros, Ribeiro (1914, 252) explica que a permanência deste uso, em sua sincronia, deve-se ao fato de que tais fazendeiros são "conservadores tenazes dos habitos fidalgos de seus avós", uma vez que "antigamente, dava-se geralmente o mesmo uso com o pronome da segunda pessôa; [sendo que] ainda hoje, [está presente] neste Estado (S. Paulo)". Ou seja, mais uma vez, o gramático justifica a produtividade sincrônica de uma determinada estrutura pela sua existência diacrônica.
Assim dito, passemos, então, aos outros dois trechos em que são feitas referências ao Português de São Paulo. Como já mencionamos, estas menções são gerais ao Estado, não delimitando, assim, nenhum grupo específico.
No primeiro caso, Ribeiro (1914, 97), ao falar dos diminutivos familiares, mostra que há uma variação lexical entre São Paulo e Minas Gerais, quanto ao termo senhora. Os paulistas usam o diminutivo nha, ao passo que os mineiros optam pelo sia.
Quanto ao segundo caso, ainda referindo-se a uma variação lexical entre estes dois Estados, Ribeiro (1914, 162) menciona que os termos diabo e diacho, além destas duas formações, encontram equivalentes em São Paulo sob a forma de dianho e, em Minas Gerais, como dialho.
Finalmente, encerrando as análises dos trechos relativos às diferenças internas do Português do Brasil, destacamos que Ribeiro, ao falar a respeito das partículas negativas, exemplifica um caso de uso comum aos Estados da Bahia e, novamente, de Minas Gerais.
Na prescrição gramatical, Ribeiro (1914, 300-301, grifos do autor) assevera que: "Não é a palavra de negação perfeita, ex.: NÃO posso – NÃO dou – NÃO". Porém, em seguida, ao comentar a prescrição que acabara de fazer, o gramático destaca existir, nos mencionados Estados, o processo de duplicação do não. Vejamos: "Em algumas provincias do Brasil, como Bahia, Minas não duplica- se ex.: NÃO posso, NÃO. NÃO dou, NÃO".
4. Considerações finais
Ao olharmos para a história da gramaticografia brasileira, a Grammatica, de Ribeiro, terá sempre um lugar de destaque face à importância que desempenhou. Como apontamos, há vários aspectos que fazem com que ela tenha a relevância acima mencionada, entre os quais podemos citar o pioneirismo quanto à gramatização do Português do Brasil e a ruptura epistemológica com o Racionalismo, modelo até então preponderante, representado, em termos linguísticos, pela Gramática Filosófica.
Tal rompimento é o que consideramos fundamental para haver as inclusões de marcas do Português do Brasil em seu texto gramatical. Ribeiro, ao se vincular teoricamente ao Naturalismo, passa a ver a língua como um ser vivo - um organismo que nasce, cresce e morre -algo, portanto, em constante evolução. Este seu olhar naturalista fez com que ele considerasse aquilo que empiricamente era observável, ou seja, algumas especificidades do Português praticado no Brasil. Apesar do rompimento com o Racionalismo, permanece, em sua Grammatica, o modelo Prescritivista. A presença destes dois modelos faz com que Ribeiro utilize-se de dois diferentes referenciais: a norma culta, por influência do Prescritivismo e o processo de vida e evolução das línguas, pela sua relação com o pensamento naturalista-evolucionista.
A condescendência do gramático com determinados usos que não estavam exatamente prescritos na norma culta pode ser vista como a aceitação de Ribeiro quanto à fatal lei da evolução linguística, contra qual ele nada poderia fazer. Nestes casos, Ribeiro acatou e registrou, em seu texto, aquilo que tributara a um processo intrínseco da própria língua, de sua natural evolução. Em outros momentos, Ribeiro assume o papel restritivo característico do Prescritivismo e estabelece aquilo que está certo e aquilo que está errado.
Há, portanto, quanto às posições gramaticais de Ribeiro, oscilação entre uma "aceitação evolutiva" e uma "restrição normativa". Tal aceitação evolutiva, com efeito, abriu espaço para que Ribeiro registrasse, em sua Grammatica, marcas do Português do Brasil relativas à hiperlíngua brasileira.
Referências bibliográficas
Arnauld & Lancelot. 2001[1. ed. 1660]. Gramática de Port-Royal. Tradução e prefácio Bruno F. Bassetto; Henrique G. Murachco, 2. ed., São Paulo: Martins Fontes.
Auroux, Sylvain. 1992. A revolução tecnológica da gramatização. Campinas: Editora da Unicamp.
Auroux, Sylvain. 1994. "A hiperlíngua e a externalidade da referência". En: Orlandi, Eni Puccinelli (org.) Gestos de leitura: da história no discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 241-251.
Auroux, Sylvain. 1998a. La raison, le langage et les normes. Paris: PUF.
Auroux, Sylvain. 1998b. "Língua e hiperlíngua". En: Língua e instrumentos linguísticos 1, jan./jun, 17-30.
Bassetto, Bruno F. & Murachco, Henrique G. 2001 [1. ed. 1660]. "Prefácio à edição brasileira". En: Arnauld & Lancelot. Gramática de Port-Royal. 2. ed., São Paulo: Martins Fontes.
Casassanta, Mário. 1946. Júlio Ribeiro e Maximino Maciel. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional.
Chevalier, Jean-Claude. 1996. Histoire de la grammaire française. Paris: PUF.
Guimarães, Eduardo. 1996a. "Sinopse dos Estudos do Português no Brasil: a gramatização brasileira". En: Guimarães, Eduardo & Orlandi, Eni Puccinelli (eds.) Língua e cidadania: o português no Brasil. Campinas: Pontes, 127-138.
Faraco, Carlos Alberto. 2002. "Norma-padrão brasileira: desembaraçando alguns nós". En: Bagno, Marcos (ed.) Lingüística da norma. São Paulo: Edições Loyola, 37-61.
Hessen, Johannes. 1964 [1926]. Teoria do conhecimento. 3. ed., Coimbra: Arménio Amado Editor.
Leite, Marli Quadros. 2005. "A hiperlíngua brasileira na construção da norma gramatical: um estudo de gramáticas do século XIX". En: Estudios portugueses 5, 103-112.
Leite, Marli Quadros. 2007. "Anotações sobre dois autores brasileiros do século XIX: Júlio Ribeiro e João Ribeiro". Texto inédito.
Pinto, Edith Pimentel. 1978. O português do Brasil: textos críticos e teóricos 1-1820/1920-fontes para teoria e história. São Paulo: EDUSP.
Ribeiro, Julio. 1880. Traços geraes de linguistica. São Paulo: Abilio A. S. Marques – Editor.
Ribeiro, Julio. 1881. Grammatica portugueza. 1. ed., São Paulo: Typ. de Jorge Seckler.
Ribeiro, Julio. 1914. Grammatica portugueza. 12. ed., Rio de Janeiro/ São Paulo/ Bello Horizonte: Livraria Francisco Alves & C.
* O presente artigo é uma versão adaptada de partes da dissertação de Mestrado por nós defendida no Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da USP, orientada pela Profa. Dra. Marli Quadros Leite, em 2010.
[1] Quanto ao conceito de gramática tradicional, adotamos o que diz Chevalier (1996) sobre este assunto. O autor diz ser aquela gramática que segue o modelo surgido na Antiguidade Clássica, isto é, que traz em seu bojo a matéria ordenada segundo a tradição greco-latina: alfabeto, ortografia, partes do discurso e sintaxe, com variações próprias de cada estágio de desenvolvimento dos estudos linguísticos.
[2] Quanto ao conceito de norma culta, adotamos como referência o que Faraco (2002, 40) diz a respeito: "Assim, a expressão norma culta deve ser entendida como designando a norma linguística praticada, em determinadas situações (aquelas que envolvem certo grau de formalidade), por aqueles grupos sociais mais diretamente relacionados com a cultura escrita, em especial por aquela legitimada historicamente pelos grupos que controlam o poder social".
[3] Antes, porém, é necessário fazer um esclarecimento terminológico: o termo metafísica é usado por Ribeiro para se referir à tradição gramatical de base racionalista, ou seja, tem, em sua obra, o valor equiparado ao que chamamos, na gramaticografia de língua portuguesa, de Gramática Filosófica.
[4] Relativamente ao tratamento dado aos idiotismos pela Gramática de Port-Royal, Bassetto e Murachco (2001, XXVI) assim se manifestam: "[...] o que geralmente se critica nesse tipo de abordagem linguística [a racionalista] é que nem tudo pode ser reduzido à razão, como os idiotismos; realmente, os escritos de Port-Royal têm muito poucos. Fazem muita abstração, baseada em poucas línguas, todas provenientes do indo-europeu; realmente é difícil, senão impossível, uma Gramática Geral que descreva todas as variantes linguísticas da Humanidade, da mesma forma que N. S. Trubetzkoi não conseguiu montar um sistema fonológico universal".
[5] Duas importantes gramáticas racionalistas do período mencionado são a de Francisco Sotero dos Reis (1800-1871) e Augusto Freire da Silva (1836-1917), editadas em 1866 e 1875, respectivamente.
[6] Cf. Auroux (1992, 38-39). Ali o autor apresenta um quadro cronológico relativo à "gramatização dos vernáculos europeus".
[7] Esta numeração representa uma nota de rodapé feita por Ribeiro. Aqui procederemos a sua devida reprodução: (1) Thomaz Ribeiro, D. Jayme, Canto IV.
[8] Em Traços geraes, Ribeiro (1880, 49-50, grifos do autor) esclarece o sentido que dá quando usa o termo derivação. Vejamos: "A classificação nas linguas tem sido sempre genealogica, porque a chamada derivação outra cousa não é sinão a filiação".
[9] Como já mencionamos anteriormente, para Ribeiro (1880), tal processo significa filiação.
[10] Esta numeração representa uma nota de rodapé feita por Ribeiro. Aqui procederemos a sua devida reprodução: (1) BARRETO FEIO, Prologo á edição de Gil Vicente.